Edição 189 - Aracaju, 14 de setembro a 12 de outubro de 2014

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Teatro

Antes disso
Comédia dramática discute paradoxos existenciais

Por Renato Tardivo

Foto: Divulgação

Elenco da peça Antes de mais nada

 

A expressão “antes de mais nada”, título da peça escrita por Flavio Cafiero (autor que estreou na literatura ano passado com o romance O frio aqui fora), condensa tempo e espaço em estado nascente: redução do trágico, redução do sublime, redução da vida, redução da morte. Antes do nada, a redução de tudo.

Antes de mais nada está em cartaz em São Paulo desde o começo do mês. Quatro atores, com a direção de Zé Henrique de Paula, interagem em uma casa: no quarto do protagonista Alfredo (Fulvio Stefanini celebrando 60 anos de carreira), na sala e na cozinha. Viúvo, Alfredo mora com a filha (Chris Couto), e, ao longo do espetáculo, a vizinha (Karin Rodrigues), aproveitando-se da “porta aberta”, entra algumas vezes na casa. A disposição dos cômodos se altera e traz também para o cenário, o “fora”, o movimento vivido por “dentro” pelas personagens.

O evento que os atravessa é a morte de Bernardo (Roney Facchini), cunhado de Alfredo, e a ida ao seu velório. Os dois foram grandes amigos, mas não se falavam havia trinta anos. Agora, Alfredo se vê impelido a se reencontrar com o amigo. Morto. E é morto, todo de preto, que Bernardo – ex-ator de televisão – entra em cena, sempre em diálogos com Alfredo. Na primeira cena do espetáculo, o niilismo de Alfredo – afeito ao uísque – contrasta com a esperança do cunhado – afeito ao vinho. A partir desse contraponto essencial irão se desenrolar os questionamentos de Alfredo.

Aposentados da memória

Muitas são as possibilidades de interpretar a presença em cena de um personagem morto. Nesse caso, há quem possa dizer que Bernardo é a personificação de Alfredo, em contato consigo mesmo. Não é exatamente esta a minha leitura, embora aponte para essa direção.

O escritor e dramaturgo Luigi Pirandello escreveu uma novela breve, publicada em 1914, intitulada “Os aposentados da memória”. Nela, o narrador afirma que, após o enterro, os mortos retornam com ele do campo santo, pois são ilusões de sua consciência. Há ali a tese de acordo com a qual nós, os vivos, construímos nossas realidades a partir dos sentidos que atribuímos às coisas. Assim, se choramos os mortos, é porque somos nós (ou um de nossos perfis) enquanto personagens das consciências deles, agora mortos, que deixamos de existir.

Nesse sentido, Bernardo (morto) ainda vive enquanto personagem da consciência de Alfredo. Em um dos diálogos, eles mencionam a conversa que nunca tiveram (provavelmente sobre o que motivou o afastamento trinta anos antes). No entanto, só agora, antes de mais nada e tarde demais, Alfredo se permite encarar o (literalmente) fantasma.

A filha de Alfredo é uma solteirona solitária, esquecida nos afazeres do lar, que se aproxima dos 50 anos. Há uma conversa entre ela e o pai em que os papeis vividos na primeira cena por Alfredo e Bernardo praticamente se repetem, mas, dessa vez, Alfredo encarna a esperança e a filha o niilismo melancólico. Os questionamentos disparados pelo reencontro dos amigos estendem-se, portanto, à filha de Alfredo. A vizinha, por sua vez, aparentemente a única sobrevivente de sua geração, já não sabe bem o que faz entre os vivos, e está entusiasmada com a possibilidade de prestigiar o ator famoso, ainda que em seu velório. A ela, resta apenas o riso, mais nada.

A peça não é pura e simplesmente uma comédia, tampouco um drama existencial. Há passagens cômicas, há constatações dolorosas, mas o espetáculo singelo e despretensioso transmite, sobretudo, a mensagem de que é durante a vida que podemos tomar decisões. Doar sentidos às coisas. Aos outros. O paradoxo, trágico por excelência, é que a redução “antes de mais nada” só se consuma na morte.

Mas, antes disso...

 

Renato Tardivo é escritor e psicanalista. Autor dos livros de contos Do avesso (Com-arte/USP) e Silente (7Letras), e do ensaio Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê Editorial/Fapesp).