Edição 189 - Aracaju, 14 de setembro a 12 de outubro de 2014
Ensaio
Por Jeová Santana
Foto: Divulgação
Se não me falham as memórias... A primeira vez que li um texto de Gabriel García Márquez foi na universidade. De lá pra cá: tantas páginas já rolaram. Mas a admiração por suas narrações mantém-se em dia devido a duas condições: professor das letras e caixeiro-viajante das palavras. Pois é, ganho com a primeira, há vinte e muitos anos, uns dinheiros para falar sobre a palavra mais bonita do mundo: literatura. Antes das discordâncias, tenho como argumento o fato de ela conter todas as outras. Na segunda, sou um metido a fazer contos e poemas que ganharam, na rolança dos anos, o abrigo em livros.
Pois bem. O intuito dessas bem traçadas é compartilhar, com meia dúzia de leitores, essa particularidade: uma das características que mais me toca no trabalho deste colombiano, que há pouco deixou este vale, as lágrimas e os risos, é o impactante poder frasal com que inicia ou termina suas narrativas, o qual gruda na lembrança e nos acompanha vida afora. Trata-se de um recurso para manter seus enredos épicos e líricos em dia e contribuir para deixar menos pífia minhas práticas pedagógicas.
Essa propensão, contudo, disputa espaço com ilustres companhias, tais como as aberturas de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro e “Missa do galo”, de Machado de Assis; Grande Sertão: Veredas e “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa; Estorvo e Budapeste, de Chico Buarque; A metamorfose e “Desista!”, de Kafka; O estrangeiro, de Camus; Ulisses e “Os mortos”, de James Joyce; Iracema, de José de Alencar; O Atheneu, de Raul Pompeia; Fogo morto, de José Lins do Rego; Vidas secas e Angústia, de Graciliano Ramos; Avalovara e o “Pássaro transparente”, de Osman Lins; A hora da estrela, de Clarice Lispector; “Natal na barca” e “Apenas um saxofone”, Lygia Fagundes Telles; Coivara da memória, de Francisco J.C. Dantas; “É difícil encontrar um homem bom”, de Flannery O’ Connor”, “As filhas do falecido coronel”, de Katherine Mansfield; Crime e castigo, de Dostoiéveski; “O ex-mágico da taberna Minhota”, “O pirotécnico Zacarias”, “Os dragões”, de Murilo Rubião etc etc etc.
Assim, alinhavo aqui, em relação a Gabriel García Márquez, carinhosamente chamado de “Gabo” pelos mais íntimos, o que ficou em mim desde o primeiro contato com sua vasta criação. A escolha não obedece a maiores rigores cronológicos, mas sim aos ditames do poço escuro da memória.
1. A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avô desalmada (1972)
1.1 “Um senhor muito velho com as asas enormes”
Ao terceiro dia de chuva haviam matado tantos caranguejos dentro da casa que Pelayo teve que atravessar seu pátio para atirá-los ao mar, pois o menino recém-nascido passara a noite com febre e se pensava que era por causa da peste. O mundo estava triste desde terça-feira.
Esse início, que já anuncia alguma coisa fora da normalidade, acentua-se com a aparição de uma figura estranha num povoado perdido no tempo e no espaço. No afã de colocar rótulos sobre as criações literárias, como forma de melhorar nossa compreensão, a crítica costuma encaixar as de Gabriel sob a etiqueta “realismo mágico” ou “realismo fantástico”. A essa tendência, ele retrucava ao dizer que mágica ou fantástica é a realidade da América latina. Nesse sentido, louve-se a capacidade do escritor em naturalizar o irreal dentro do cotidiano. É o que acontece com esse anjo, que perde a prioridade da atenção dos habitantes, depois de lhes despertar toda a sorte de expectativas.
1.2 “O afogado mais bonito do mundo”
Os primeiros meninos que viram o volume escuro e silencioso que se aproximava do mar imaginaram que era um barco inimigo. Depois viram que não trazia bandeiras nem mastreação, e pensaram que fosse uma baleia.
Aqui, ressalto a precisão do duplo adjetivo em relação ao objeto que desponta no mar e o fato de colocar, sob a ótica das crianças, a primeira impressão sobre uma forma que, mais adiante, descobre-se ser de “um ser humano, porque sua pele estava revestida de uma couraça de rêmora e de lodo”. A presença deste corpo, que tivera a capacidade de continuar a crescer depois da morte, causará um rebuliço nas mulheres do povo, despertando-lhes desejos e alterando a relação com seus homens.
1.3 “A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avô desalmada”
Erêndira estava banhando a avô quando começou o vento de sua desgraça.
E bote desgraça nisso! Por conta de um descuido doméstico, que leva a casa da avó pelos ares, a neta é obrigada a se prostituir para reparar os prejuízos. As duas andarão para cima e para baixo até que Erêndira consiga a renda que lhe permita ressarcir a avó. O leitor tende a não ver a hora para que finde tal tirania, tão infensa aos nossos valores em relação a estatutos pró-crianças e adolescentes. Mas, até que isso aconteça, não deixará de ter uma relação de ambiguidade quanto à condenação da avó. Humano demasiado humano.
2. Doze contos peregrinos (1992)
2.1 “O avião da bela adormecida”
Era bela, elástica, com uma pela suave da cor do pão e olhos de amêndoas verdes , e tinha o cabelo liso e negro e longo até as costas, e uma aura de antiguidade que tanto podia ser da indonésia quanto dos Andes.
É ao lado dessa beleza tão plástica e vívida que o narrador-personagem estará em companhia num voo de Paris para Nova York. A escolha do título não poderia ser mais ajustada para um relato que contempla um tema caro à tradição narrativa. Limitado apenas à contemplação da beldade, de imediato nos vemos na dor da perda presente na passante de Baudelaire. Tudo está em movimento, inclusive os nossos desejos. A impossibilidade de atendê-los é alimento visceral para a grande arte.
2.2 “Só vim telefonar”
“Numa tarde de chuvas primaveris, quando viajava sozinha para Barcelona dirigindo um automóvel alugado, Maria de la Luz Cervantes sofreu uma pane no deserto dos Montenegros. Era uma mexicana de 27 anos, bonita e séria, que anos antes tivera certo nome como atriz.”
Esse é um dos meus preferidos. Em quatro linhas temos lugar e tempo, as características físicas da personagem envolta no aparente contraste do “bela séria” e sua forma de sobreviver. O que vai nos deixar com o frio na espinha é o pesadelo que cairá sobre ela ao pedir ajuda ao motorista de um ônibus. E mais não conto para instigar a curiosidade de quem ainda não leu.
2.3 “O rastro do teu sangue na neve”
Ao anoitecer, quando chegaram à fronteira, Nena Daconte notou que o dedo com a aliança de casamento continuava sangrando.
Já familiarizados com a capacidade inventiva do autor, é claro que colocamos sob suspeita esta informação. Da busca para estancar esse sangue, que vai tornar-se “um manancial incontrolável”, as duas personagens, que vão passar a lua de mel em Paris, veem-se envolvido numa rede de desencontros. A cada tentativa do marido, Billy Sanchez de Ávila, para encontrá-la no hospital, misturam-se informações, a ambiguidade instaura-se nas palavras de médicos e atendentes. O horror, o horror!
3. Crônica de uma morte anunciada (2003)
No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m da manhã para esperar o navio que trazia o bispo. Tinha sonhado que atravessava um bosque de grandes figueiras onde caía uma chuva branda, e por um instante foi feliz no sonho, mas ao acordar sentiu-se completamente salpicado de cagada de pássaros.
Aqui temos uma situação deveras intrigante. O leitor já sabe do desfecho da narrativa na primeira frase, mas será impelido a acompanhar o narrador para saber por que o personagem terá esse fim. Colocar o sonho como reforço da premonição é outro recurso bastante sedutor, que dará peso à trama quando as horas que antecedem ao crime são recontadas com ambiência de filme. Somos a levados a pensar que o segredo do cinema está no corte, ou seja, na edição. Que resultado não teríamos caso este relato caísse em mãos de roteiristas como os que consagraram as realizações de um Hitchcok.
4. Do amor e outros demônios (1996)
Um cachorro cinzento com uma estrela na testa irrompeu pelos becos do mercado no primeiro domingo de dezembro, revirou mesas de frituras, derrubou barraquinhas de índios e toldos de loterias, e de passagem mordeu quatro pessoas que se atravessaram no seu caminho. Três eram escravos negros. A outra foi Sierva María de Todos los Ángeles, filha única do marquês de Casalduero, que fora com uma empregada mulata comprar uma fieira de guizos para a festa de doze anos.
É evidente que as consequências da ação tão intempestiva do cão tendem a se tornar mais graves em relação ao único nome citado nesta abertura, cujo enredo passa-se no final do século XVIII, no vice-reinado da Colômbia, sob o domínio da Espanha. A possibilidade de adquirir a hidrofobia, mais popular entre nós como “raiva”, levará Sierva ao isolamento num convento sob suspeita de não estar contaminada, mas sim sob as garras do demônio. O embate entre fé e razão ainda tem o componente do amor que advirá do padre espanhol Caytano Delaura, incumbido de exorcizá-la. A inclinação do padre terá a Inquisição como adversária. O mote, segundo Gabriel, para a criação narrativa, também levada ao cinema, adveio de sua atividade como jornalista ao fazer uma reportagem, em 1949, sobre a venda do convento de Santa Clara, a ser demolido para a construção de um hotel. Numa das lápides, desfeita a picareta pelo mestre-de-obras, o intrépido reporte deparou-se com esta imagem: “na pedra carcomida pelo salitre (...) um nome sem sobrenome: Sierva María de Todos los Ángeles. Estendida no chão, a cabeleira esplêndida media vinte e dois metros e onze centímetros”.
5. Cem anos de solidão
Muito anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo.
Sempre há ocasião nas minhas aulas para dizer a primeira frase da obra que, publicada pela primeira vez em 1967, consagrou Garcia Márquez além das fronteiras latinas e o levou ao Nobel de Literatura em 1972. Aqui, ao invés de “anunciada” a morte já se concretizou. Resta a portentosa reconstrução do percurso do Coronel inserido na saga de uma família, desdobrada em mais de trezentas páginas. Estas exigem empenho por parte do leitor, devido à sequência de personagens com o mesmo sobrenome. A aldeia de Arataca onde o escritor nasceu é elevada à mítica Macondo, palco de acontecimentos que reforçaram o timbre de “realismo mágico” sobre a escritura do autor. Nesse mundo de coisas ainda sem nome, encontramos a energia que consagra o humano na sua desventurada passagem sobre a terra.
6. O amor nos tempos do cólera (1985)
Para não decepcionar aos que ainda não leram, não direi em que parte está o trecho a seguir, pertencente a este portentoso relato sobre o sentimento imbuído de melhorar nossa pálida condição. No entanto, quantas desventuras cometidas em seu nome. Assim, acompanhamos, cheios de ansiedade, a saga de Florentino Ariza que tenta, anos a fio, consolar em inúmeras mulheres o desvio de rota em relação ao coração de Fermina Daza. Em determinado momento, somos brindados por este diálogo curto, poético, visceral:
O comandante olhou Fermina Daza e viu em suas pestanas os primeiros lampejos de um orvalho de inverno. Depois olhou Florentino Ariza, seu domínio invencível, seu amor impávido, e se assustou com a suspeita tardia de que é a vida, mais que a morte, a que não tem limites.
– E até quando acredita o senhor que podemos continuar neste ir e vir do caralho? Perguntou.
Florentino Ariza tinha a resposta preparada havia cinquenta e três anos, sete meses e onze dias com as respectivas noites.
– Toda a vida – disse.
7. “Algo de muito grave vai acontecer neste povoado”
Imagine você uma aldeia pequena, onde vive uma senhora velha que tem dois filhos, um de 17 e o outro de 14. A velha serve o café da manhã e expressa no rosto uma preocupação. Os filhos perguntam o que sucede e ela responde:
– Não sei, mas amanheci com o pressentimento de que alguma coisa muito grave vai acontecer nesta aldeia.
Aqui temos um fato literário: este conto nunca foi publicado em livro. Foi lido pelo autor numa palestra. Gosto deste começo machadiano que coloca o leitor na cena. São muitos os exemplos desse tipo na obra do “Bruxo do Cosme Velho”. Mostro apenas este, em “Cantiga de esponsais”: “Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical” (1993). A situação criada por García Márquez resume-se a isto: a frase dita pela velha senhora vai ser levada pelo filho mais velho aos amigos de sinuca. As consequências servem para várias leituras. É um bom material a ser explorado em sala de aula, por professores que resistem à pressurização com o que o objeto literário vem sendo tratado no ensino médio. Talvez, para encerrar esta tíbia homenagem, não caiba melhor recurso que usar as palavras deste escritor único, que deixou esta vida, nem cedo, nem descontente, no prólogo “Por que doze, por que contos e por que peregrinos”, presente em Doze contos peregrinos. Nelas há lições importantes para quem se arvora a ser praticante das experiências narrativas aqui arroladas:
(...) o esforço de escrever um conto curto é tão intenso como o de começar um romance. Pois no primeiro parágrafo de um romance é preciso definir tudo: estrutura, tom, estilo, ritmo, longitude e, às vezes, até o caráter de algum personagem. O resto é o prazer de escrever, o mais íntimo e solitário que se possa imaginar, e se a gente não fica corrigindo o livro pelo resto da vida é porque o mesmo rigor de ferro que faz falta para começa-lo se impõe na hora de terminá-lo. O conto, por sua vez, não tem principio nem fim: anda ou desanda. E se desanda, a experiência própria e a alheia ensinam que na maioria das vezes é mais saudável começá-lo de novo por outro caminho ou jogá-lo no lixo...
Em tempos de massacre da palavra; em tempos da presença esmagadora da imagem; em tempos de afogamento do diálogo; em tempos de consumismo desesperado; em tempos de formas sutis de escravidão; em tempos de leitores, quando há, de textos distantes da literatura, só resta o consolo da arte, este instrumento que nos coloca acima do animal e nos consola da barbárie. Afastados da orgia dos deuses de outras civilizações e abandonados à própria sorte por um suposto deus judaico-cristão, as criações de Gabriel García Márquez suavizam nossa passagem por este vale e suas lágrimas mediante suas narrativas marcadas por imaginação, humor e transcendência. Felizes os convidados para a ceia deste senhor das palavras!
Jeová Santana é professor adjunto da Universidade Estadual de Alagoas, produtor do programa “Mestres e Músicas” (Aperipê FM), mestre em Teoria Literária pela Unicamp, doutor em Educação e Ciências Sociais pela PUC-SP. Autor de Dentro da casca (1993), A ossatura (2002), Inventário de ranhuras (2006) e Poemas passageiros (2011). Contato: [email protected].