Edição 189 - Aracaju, 14 de setembro a 12 de outubro de 2014
Poesia
Por Marília Garcia
deixei um par de havaianas verdes
com uma bandeirinha do brasil presa à tira
no aeroporto schönefeld de berlim
minha mochila estava abarrotada
de histórias dobradas como neoprene tentando se armar
minha mochila estava abarrotada de más lembranças
além dos chás biscoitos doces e livros
que a rike bolte tinha me dado na estação de trem
– regalos para tu mamá
minha mochila não podia mais comportar
um par de havaianas verdes
quando a easy jet me disse no aeroporto
que eu não podia levar uma sacola na mão
então tudo tinha que caber na mochila
mas não cabia
fazia 1oC em berlim e nem pude usar as havaianas verdes
que deixei no chão ao lado do banco frio de metal
no aeroporto schönefeld
como quem acende uma fogueira
de fotografias e cartas velhas
podia ter deixado também ao lado das
havaianas verdes uma parte da memória
mas na hora do embarque
no aeroporto schönefeld de berlim
não tive a ideia da fogueira
porque estava atenta às perguntas
que me faziam na imigração
– do you have liquids in there?
– they’re in a plastic bag
– would you take them out?
passando pela esteira
e olhando a arquitetura daquele país
entendo que eles não querem controlar apenas
as coisas líquidas
é preciso montar uma tipografia
e repetir as palavras quando você está no aeroporto
schönefeld de berlim
eles não querem só as coisas líquidas
diz a moça no embarque mas o que querem
se nem falamos a mesma língua?
– would you open your bag, please? is that a keyboard?
logo que abro a mochila
as histórias saindo do teclado
e uma cena em holograma se desenha
eles querem ouvir como se fala uma língua de vogais
logo que abro a mochila
as histórias se organizam em
4 dias uma sopa de cenoura em rosenthaler strasse
um dicionário de palavras mexicanas
para não se perder
um pedaço da parede de pelúcia cor-de-rosa
em kottbusser tor e o tom de voz do garoto
neozelandês no albergue explicando em francês o que significa
ponto de vista
4 dias poderia ser um livro sobrando na mochila
mas tudo se resume a uma noite
gelada sozinha dentro de um memorial
na manhã seguinte você olha para as estantes vazias
são quadrados brancos iluminados erguidos
ao contrário no espaço do chão
quase um abismo do cosmo ao subsolo
ela diz contando a história da mulher
sentada no banco de trás do carro
com cabelos esvoaçantes
fugindo da neve para sempre
no meio desta fuga
a mulher olha para trás e diz alguma coisa
então você entra em cena
e pergunta – com quem você está falando?
e ela responde – com o espectador
quando chego em casa e abro a mochila
lembro que não trouxe as havaianas verdes
que não usei em berlim
trouxe apenas a memória do que já existia antes da viagem
uma réstia inoportuna e o fim
deixei um par de havaianas verdes
no aeroporto schönefeld de berlim
mas deveria ter vindo para casa de costas
e deixado parte da memória encostada no banco frio de metal
isso é o que percebo depois de descobrir
a previsão de tempo para a chegada
arrepio e de entender
que existe um cheiro antes da neve chegar
***
Poema do livro Um teste de resistores, recém-lançado pela Ed. 7Letras.
Marília Garcia é carioca e autora de 20 poemas para o seu walkman (2007) e engano geográfico (2012). Atualmente mora em São Paulo e trabalha com tradução.