Edição 188 - Aracaju, 17 de agosto a 14 de setembro de 2014
Crônica
Por Reginaldo de Jesus
Foto: Gustavo Moura
Ariano Suassuna em cena do filme O Senhor do Castelo
Todo artista, no fundo, é como o pai da tragédia grega, que dedicou as suas obras ‘ao Tempo’, ou seja, à imortalidade e à glória. (Hênio Tavares, Teoria literária, 1989, p.41)
O mês de julho se foi e deixou uma forte impressão de que já era a encarnação de agosto, que para os supersticiosos é o mês do desgosto. Como nasci neste mês, quero crer que a superstição em torno dele não se justifica, uma vez que me julgo, por inúmeras razões, uma pessoa bem-aventurada. Mas o fato é que a força da superstição popular consagrou agosto como um mês um tanto maldito. Segundo creem os supersticiosos, as maiores tragédias que atingem o homem, coletiva ou individualmente, se dão no oitavo mês do ano, no calendário cristão. Sem querer polemizar esta crença popular, a verdade é que julho de 2014 tomou para si a famigerada condição de agosto por ter-nos levado deste mundo, como num efeito dominó, quatro grandes escritores brasileiros: Ivan Junqueira, João Ubaldo Ribeiro, Rubem Alves e Ariano Suassuna. Três dos quatro literatos falecidos desfalcaram a Academia Brasileira de Letras, e o único que não pertenceu a ela tornou-se um imortal a seu modo.
O primeiro a partir foi o Acadêmico, jornalista, poeta, tradutor e ensaísta Ivan Junqueira, sexto ocupante da Cadeira nº 37, da Academia Brasileira de Letras, falecido aos 79 anos, no dia 3 de julho, de insuficiência respiratória, no Hospital Pró-Cardíaco, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro, onde estava internado há mais de um mês. A notícia fatídica da morte de Ivan, no Jornal Nacional, chocou-me bastante porque conversei com ele na ABL, no lado de fora do Petit Trianon, tendo Luiz Antônio, bibliotecário da Academia, e a estátua de Machado de Assis, como interlocutores, há três meses de seu falecimento, e ouvi de sua boca a incerteza de que completaria seus oitenta anos no dia 3 de novembro. Como um bom vate, vaticinou sua própria morte e se foi há exatos quatro meses de se tornar um octogenário.
Conheci Ivan Junqueira no X Congresso Internacional da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada), em 2006, na UERJ. Na ocasião, ele era o presidente da ABL, e juntamente com o Acadêmico Antonio Carlos Secchin e o poeta Ferreira Gullar participaram da mesa-redonda "Os poetas", mediada pelo professor e pesquisador José Luís Jobim. Nos anos de 2013 e 2014, assisti a várias conferências na ABL e Ivan Junqueira sempre estava presente. Era um Acadêmico deveras assíduo. No dia 25 de março deste ano, o bardo coordenou a conferência do crítico Alfredo Bosi, intitulada “Leitura de Infância, de Graciliano Ramos”, e eu estava lá.
Alguns dias depois, acho que numa quinta-feira, dia do chá dos imortais na ABL, Luiz Antônio e eu conversamos com o poeta. Ele nos contou de sua emoção pelas homenagens de lançamentos e relançamentos de alguns de seus livros em comemoração pela passagem de seus oitenta anos. Ivan Junqueira não viveu para ver esses livros virem a lume. Disse-nos que não gostava de homenagem pública por se emocionar muito e temer que “a indesejada das gentes” viesse buscá-lo antes da hora. Falei para ele que havia comprado há pouco tempo alguns de seus livros de ensaios, a saber: A cinza do espólio, Ensaios escolhidos e Ensaios (T.S.Elliot). Também lhe contei que fui aluno do poeta Ricardo Thomé, que organizou e prefaciou Melhores poemas de Ivan Junqueira (2003) e para quem Ivan escreveu o prefácio de Arranjo para cinco vozes (2005).
Foto: Arquivo do autor
Reginaldo de Jesus e o escritor Ivan Junqueira
E para mais ajuizar a importância de Ivan Junqueira para a literatura brasileira, transcrevo aqui o comentário de Luiz Antônio à nota de falecimento do poeta, escrita pelo sergipano Ancelmo Gois, colunista de O Globo e apresentador do programa De lá pra cá, da TV Brasil:
Nome: Luiz Antônio de Souza – 3/7/2014 – 10:21
Poeta, com p maiúsculo, desses que teimam em fazer poesia e boa poesia; ensaísta, de primeira grandeza, Manuel Bandeira não me deixa mentir; tradutor, dos melhores entre os melhores, que o digam Baudelaire e T.S. Elliot, aos quais devotou o melhor de sua capacidade intelectual; imortal da Academia Brasileira de Letras, e das letras, sim, será imortal por suas obras, dentre elas a obra da amizade, pois tem muitos amigos, que neste momento pranteiam a impossibilidade de conviver com Ivan Junqueira, que eu, na qualidade de funcionário da ABL, aprendi a respeitar, a admirar e, depois, em decorrência do convívio, passei a tê-lo como amigo, sim, pois os amigos convivem e eu tive o privilégio de conviver com Ivan Junqueira, ou como o tratava, Dr. Ivan. Para além disso tudo, choramos a perda, pranteamos o fato de que a humanidade fica mais pobre, principalmente quando um grande poeta deixa-nos, para doravante fazer poesia na noosfera, ou do outro lado, onde vivem as musas. Com o coração apertado, dizemos simplesmente: Adeus.
O segundo Acadêmico a nos deixar, neste julho sinistro para a literatura brasileira, foi o romancista João Ubaldo Ribeiro, ocupante da Cadeira nº 34, falecido de embolia pulmonar, em 18 de julho, aos 73 anos, em sua casa no Leblon, Rio de Janeiro. Quase tive a oportunidade de conhecê-lo em sua última conferência na Academia Brasileira de Letras durante o 2º Ciclo de Conferências – “Vozes Contemporâneas: a ficção.” A conferência de João Ubaldo denominou-se “Como eu escrevo” e foi realizada no dia 29 de abril deste ano. Infelizmente minhas férias acabaram um pouco antes desta data e tive que voltar para Aracaju. No entanto, assisti a esta última aparição do autor de Sargento Getúlio, neste tipo de evento, no site da ABL.
Enterneceu-me a homenagem que João Ubaldo prestou a Aracaju, onde ele morou com a família até os 11 anos. Entre outras coisas, ele conta que foi na capital de Sergipe que nasceu o amor dele pelos livros, antes mesmo de aprender a ler e escrever. Seu pai tinha uma biblioteca muito rica, e toda a casa onde moravam era repleta de livros. Nesta época, falecera Monteiro Lobato, um de seus ídolos da literatura, e o futuro romancista não conseguia entender como uma pessoa imortal poderia desaparecer de repente.
Quando se reportou à forma como escreve, João Ubaldo, com sua usual maneira hilária de contar as coisas, declarou que não tem plano pronto durante a gestão de suas obras. Por isso mesmo, muitas delas já desandaram. E deu como exemplos os livros Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro. Ele admitiu que quase perdeu o fio da meada destes dois romances e, por um triz, eles não viriam a lume.
O terceiro passamento de um escritor, em julho passado, não foi de um Acadêmico, mas de um intelectual que poderia ter pertencido à ABL, tão vasta, variada e importante é sua produção bibliográfica. Refiro-me ao mineiro Rubem Alves, psicanalista, educador, teólogo e literato, que morreu em Campinas, aos 80 anos, de falência múltipla dos órgãos, um dia depois de perdermos João Ubaldo. Com a morte de Rubem Alves, a educação brasileira fica sem seu segundo maior prócer. O primeiro foi, sem dúvida, Paulo Freire.
É muito privilégio para um mesmo país ter tido logo dois educadores como Paulo Freire e Rubem Alves, para ficarmos só no campo da educação, em que se tornaram tão célebres estes dois pensadores. E o respeito e a admiração que Rubem nutriu por Paulo foram tão grandes que, como professor emérito da UNICAMP, se recusou a dar um parecer sobre o ingresso do autor de Pedagogia do oprimido como professor titular desta conceituada universidade. Para Rubem Alves, seria um contrassenso a UNICAMP querer um parecer para admitir em seu quadro de professores uma figura conhecida e cortejada pelas melhores universidades do mundo.
Como sou professor, ou melhor, vejo-me como educador, concordo plenamente com a visão romântica de Rubem Alves a respeito do perfil do verdadeiro professor-educador. Em seu livro A alegria de ensinar, Rubem defende a tese de que o ato de ensinar tem que ser encarado com alegria, paixão e arte. Ensinando, o professor está exercitando sua imortalidade, pois sua memória continuará naqueles que aprenderam a contemplar o mundo através da magia de sua palavra.
Enfim, se alguém ainda tem dúvida de que “a indesejada das gentes” estava famélica, no mês passado, perdemos Ariano Suassuna, nosso Dom Quixote. Ariano, eleito para a Cadeira nº 32 da ABL em sucessão ao sergipano Genolino Amado, morreu no Recife onde morava, no dia 23 de julho, aos 87 anos, vítima de um acidente vascular cerebral hemorrágico (AVC). O Brasil, especialmente o Nordeste, lamentou sua morte pelo que ele representa para nossas literatura e cultura e pela defesa que ele fazia de nossos patrimônios culturais, principalmente em suas famosas e disputadas aulas-show.
Tive o privilégio de assistir a uma aula-show de Ariano Suassuna em Aracaju, por ocasião do calendário de comemorações dos 34 anos da UFS (Universidade Federal de Sergipe), em 14 de maio de 2002, no Teatro Tobias Barreto. Fui preparado para colher alguns autógrafos de Ariano e levei meus exemplares de o Auto da Compadecida e de Aula Magna. O primeiro é sua peça mais lida e popular, consagrada definitivamente depois da minissérie da Rede Globo, dirigida por Guel Arraes e levada às telas dos cinemas; já o segundo, é uma aula-show de Ariano proferida na UFPB (Universidade Federal da Paraíba), em 16 de novembro de 1992, portanto, dez anos antes da aula-show ministrada por ele na UFS.
Não foi difícil conseguir seus autógrafos. Antes de começar a aula, Ariano estava sentado, por incrível que pareça, sozinho, na primeira fila do teatro. Aproveitei o ensejo, sentei-me ao seu lado com os dois livros supramencionados e já fui puxando conversa. Apresentei-me como professor de português da Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão e perguntei como ele poderia ter medo de viajar de avião se era o que mais estava fazendo, nos últimos tempos, para ministrar essas aulas-show. Ele sorriu e disse que eu tinha razão. Como já estava quase na hora da aula, pedi seus autógrafos, que me foram dados de forma bem personalizada.
Foto: Reginaldo de Jesus
Autógrafo de Ariano Suassuna ao autor
Outra relíquia que ganhei, não de Ariano Suassuna, mas do cineasta paraibano Marcus Vilar, foi um exemplar em DVD do filme "O Senhor do Castelo", acompanhado de um belo cartaz deste filme. Nesse filme, Marcus, premiado diretor de curtas, teve a honra de dirigir e produzir seu primeiro longa até o momento, um filme-documentário sobre a vida e obra de Ariano Suassuna, com narração do próprio escritor. Foram 20 horas de material gravado em 15 anos de luta contra a falta de recursos e só em 2007 o trabalho ficou pronto e editado em 72 minutos. No entanto, todo este esforço valeu a pena, pois o filme imortalizou mais ainda o autor de O santo e a porca e foi agraciado com o Prêmio de Júri Popular na 11ª Mostra de Cinema de Tiradentes.
Em conversa com Marcus Vilar, na casa do contista sergipano Antonio Carlos Viana, que teve dois de seus contos transformados em curtas por esse cineasta, e também em bate-papos pelo Facebook, Marcos me contou detalhes das filmagens de "O Senhor do Castelo". Seu primeiro contato com Ariano foi justamente por ocasião da Aula Magna que ele ministrou na UFPB, em 1992. Como funcionário da UFPB, Marcus foi convocado para documentar aquela aula-espetáculo. E assim o fez, embora não a tenha utilizado em seu filme. Depois da aula, no caminho para a casa de uma tia de Ariano, ocorreu a Marcus a ideia de registrar a trajetória de Ariano Suassuna. Durante o almoço, o cineasta paraibano propôs ao escritor uma entrevista inicial, ponto de partida do documentário propriamente dito. Ariano foi bem condescendente neste e noutros tantos momentos das filmagens.
Como vimos, julho de 2014 foi mesmo um mês devastador para a literatura brasileira. Há muito tempo não se via tanto escritor brilhante partir num mês só. Foram-se três próceres da ABL num átimo. Contudo, se suas vidas físicas foram ceifadas quando ainda, a despeito das idades avançadas, poderiam ter-nos legado mais de suas obras magistrais, eles já haviam erigido suas imortalidades em vida nas obras deixadas. E alguns deles, como Ariano Suassuna e Ivan Junqueira, por exemplo, ainda tiveram tempo de nos deixar obras póstumas. Ariano terminou, pouco antes de morrer, O jumento sedutor, seu livro de mais longa gestação, já que levou 34 anos para ser concluído. Ivan Junqueira, por sua vez, deixou inéditos os livros Essa música, poemas, e Reflexos do sol-posto, ensaios.
Reginaldo de Jesus é professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira no IFS – Campus São Cristóvão. Contato: [email protected].