Edição 188 - Aracaju, 17 de agosto a 14 de setembro de 2014

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Reportagem

Casas abandonadas
As moradias condenadas pelas crises econômicas

Por Romildo Guerrante

Fotos: Romildo Guerrante

 

Não faz muito tempo, fui convidado para uma roda de viola rústica no interior do Estado do Rio, na região em que passei minha infância. Imaginei que fossem caboclos dali mesmo que fariam a cantoria. Mas não, pra minha surpresa dei de cara com alguns cidadãos urbanos, vestidos com roupas da cidade, aparentemente deslocados nos toscos bancos do quintal de uma casinha de pouco emboço, onde a hospitalidade rural lhes fazia bem.

Alguns deles tinham saído dali na juventude em busca de trabalho, cada vez mais escasso numa região onde sucessivamente a economia do café e da cana de açúcar foi à bancarrota. Uma região que continua em decadência, aparentemente sem salvação. Muitos dos que se foram deixaram pra trás a família, outros não deixaram nada, senão as casas em que viviam. Estavam de volta, aposentados, vivendo da renda nem tão generosa assim da Previdência, alguns, outros em condições melhores. Alguns para ficar, para retomar os contatos com a gente da terra. Outros ali apenas para matar saudades.

Na ida para o pequeno sítio do anfitrião, fui observando à beira da estrada muitas casas abandonadas. Algumas há tanto tempo que cresciam árvores e arbustos em seus antigos cômodos. Perto de uma delas desci para dar uma olhada mais de perto, algumas vacas não gostaram, mas deu pra ver que de casas mesmo só existem as paredes, em pandarecos, e telhados destruídos. O assoalho em que pisaram famílias que nunca conheci estava coalhado de marcas dos animais que ali se abrigaram. Abrigo contra o sol forte nos descampados da região, abrigo contra as tempestades assustadoras.

Voltei a percorrer a região nos dias que se seguiram e, atualmente, estou abrindo o leque de minha busca pelo abandono. Procuro remanescentes das famílias que viveram nessas casas. Tarefa difícil. Geralmente as casas estão isoladas do mundo. Não fazem parte sequer de um pequeno aglomerado. Estão sozinhas. Algumas de janelas e portas fechadas, outras nem janelas têm. A maioria guarda vestígios dos telhados. Por eles posso saber se a construção é mais ou menos recente. O tipo de telha utilizada é um bom indicador.

Muitas são feitas de barro socado, uma parede de bambu trançado sobre a qual o barro bruto é aplicado. Tosco, rústico, humilde. Mas acolhida pra muita gente durante muito tempo. Abrigo renegado depois de algum tempo, quase que certamente pela dificuldade de sobreviver numa região onde a economia entrou em descompasso.

Maioria das que vi estão à beira das estradas e dos caminhos, estratégicos para esses moradores que provavelmente tocavam uma pequena economia de subsistência, criavam vacas, cabritos, galinhas. Coisa pouca, mas que garantia o alimento.

Cheguei a uma dessas casas em que o abandono tinha outra causa. Uma herança litigiosa que, arrastando-se na justiça, viu desaparecerem todos os possíveis herdeiros nos muitos anos sem solução. E a casa ficou lá. Não tem nem quem a invada. No interior, há um certo respeito pelo patrimônio alheio. Mas nem tem demanda de ocupação. Buscam-se casas nas cidades. As pobrezinhas largadas na roça hão de ser consumidas pelo tempo. Como a casa em que viveu Euclides da Cunha em São Fidélis, reduzida a ruínas e perdida no alto de uma serra quase inatingível.

O Brasil precisa de casas, mas nenhuma dessas que eu vi por aí é cobiçada por ninguém. Querem casa nas cidades, porque dizem que não há ninguém na roça para prestar serviço de qualquer natureza. Migraram todos. E ninguém quer mais o trabalho duro da enxada, a roça perdida na falta de chuvas, a ausência de socorro em caso de doença.

O Brasil precisa de 5 milhões de residências para urbanoides. Alguns falam em 12 milhões de residências. Mais de 100 bilhões de reais para atender. Sem contar com os custos das redes de saneamento, transportes, escolas, hospitais.

Há movimentos que pregam a desurbanização, uma volta ao campo. Romântico. Na proporção em que se deu o esvaziamento, no máximo se conseguiriam algumas dúzias de cantadores saudosos das amizades que fizeram na roça durante a infância.

Não é um processo brasileiro, não é uma jabuticaba exclusiva. A economia é perigosa. Detroit, nos Estados Unidos, chegou a ter 2 milhões de habitantes na década de 70. Hoje tem menos de 800 mil. A crise na indústria automobilística com a chegada dos veículos japoneses promoveu uma corrida atrás de trabalho fora de lá.

Um fotógrafo em quem me sinto inspirado, Kevin Bauman, fascinado com a beleza triste das casas abandonadas em Detroit, iniciou um projeto para fotografar 100 residências. Ele vende cópias das fotos em benefício de campanhas sociais. Lendo sobre o que ele pensa, cheguei à conclusão de que andamos na mesma trilha. Como ele, entendo as razões das crises em que as sociedades capitalistas desembocam de tempos em tempos. Mas fica apertada no meu peito a nostálgica dificuldade de racionalizar a visão de uma família deixando para trás, talvez sem remorsos, essas casinhas construídas certamente com grande esforço no meio do nada.

Paro diante delas e fico imaginando quem teria morado ali, que tipo de vida levava, por que deixou a casa largada lá no meio do mato – às vezes em lugares lindos. Quantas histórias essas paredes semidestruídas não contam pra ninguém? No campo em volta de algumas dessas arquiteturas em decomposição passeiam bois, pousam bandos de garças.

Casas que ficaram ali para que o tempo as consumisse, batendo janelas ao vento, perdendo beirais, descascando as paredes. Casas deixadas para a ausência de memória, como se nelas nada tivesse acontecido de humano, como se ali ninguém tivesse nascido, brincado, amado. Quem sabe, morrido?

 


Romildo Guerrante é jornalista e editor da Revista Bio.