Edição 187 - Aracaju, 20 de julho a 17 de agosto 2014

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Livros

Casamento e catarse
Livro traz histórias tragicômicas e reais

Por Renato Tardivo

Foto: Divulgação

Thiago Picchi: histórias inventivas e tocantes

 

A arte de salvar um casamento, expressão que dá título à coletânea de contos de Thiago Picchi (7Letras, 2014), não é literal. Não sabemos o que motivou essa escolha – trata-se do título do primeiro (e mais longo) conto do livro. Mas, ao longo dos seis contos, encontraria o leitor diretrizes para salvar o seu casamento? A resposta é não. E isso faz do livro um equívoco, ao menos no que diz respeito à escolha do título? A resposta, novamente, é não. Vamos aos contos.

O primeiro é uma excelente narrativa na qual o narrador-personagem relata eventos que compõem a crise de seu casamento, marcada pela acomodação do marido e pela mudança (estética, sobretudo) nas preferências de sua mulher. Entre outros méritos, a narrativa se destaca, ainda que escrita no ponto de vista do marido, ao não tomar partido de um ou de outro. Qualidades e, sobretudo, defeitos são apresentados ironicamente com imparcialidade – o que, aliás, será a tônica dos demais contos. Uma crítica pertinente à arte contemporânea, que “prescinde de explicações”, mas vem sempre “com um texto explicativo do lado”, atravessa a narrativa, tanto no que afasta quanto no que aproxima/salva o casal.

O segundo texto, “Sorria”, trata da morte com leveza – sem ser superficial. O irmão de uma paciente terminal, acometida pela doença que matou os demais familiares – e fatalmente o acometeria –, troca provocações com a irmã, ao estilo quem ri por último ri melhor. A “Liberdade ainda que tardia”, de que se fala no conto, é metáfora tanto para a morte quanto para o sorriso. “Cara a tapa” e “Comparando nossos corpos com os de nossos antepassados”, terceiro e quarto contos respectivamente, lidam, cada qual a seu modo, com as marcas e traumas que acumulamos ao longo da vida e que continuamente refazem nossa personalidade, reconstroem o nosso rosto.

“Um homem respeitado” traz a relação conflituosa e complementar entre um homem de meia-idade e a mãe, com quem mora. A narrativa gira em torno do desejo (ou da falta dele), a partir da compulsão por comida, da atração sexual do narrador pela fisioterapeuta, da rivalidade entre mãe e filho, velhos e jovens, magros e gordos. Finalmente, “A árvore da Lagoa” aborda a sociedade do espetáculo por meio de uma ficção tragicômica, mas assustadoramente real.

Embora abordem personagens bastante diversas em ambiências ficcionais distintas, há algo que une os seis contos. Forma (o gênero conto) e conteúdo (os conflitos das personagens) combinam-se em um casamento: os protagonistas carregam afetos estrangulados e buscam sua descarga, sua catarse. Como o fazem e o qual o desfecho das histórias – eis a virtude do livro. Thiago Picchi cria situações tão inventivas quanto tocantes, e, nesse sentido, a expressão “a arte de salvar um casamento”, lida inicialmente à luz do primeiro conto, é irônica e sensível. Como o livro todo.

 


Renato Tardivo é escritor e psicanalista. Autor dos livros de contos Do avesso (Com-arte/USP) e Silente(7letras), e do ensaio Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê/Fapesp). Site: www.renatotardivo.com.br.