Edição 187 - Aracaju, 20 de julho a 17 de agosto 2014

Youtube Twitter

Ficção

Acarajé
Um sonho realizado

Por Paulo Lima

 

“Nós agradecerrrr a carrinho de todas vocêis.”

Naná segurava as tripas que pareciam querer explodir. Nunca tinha visto um rebanho tão grande de gringos. Alemão pra cá e pra lá. E quando eles tentavam falar português, eitcha, era uma comédia. Até ela já estava se sentindo uma alemoa. Vixe! E por que não? Tinha visto numa sessão coruja um filme alemão. Não havia só gente loura naquela terra. Tinha pretinhos como ela. Até umas palavrinhas da língua deles ela já estava manjando. Danq. Gut morg. Wi gets. Era preciso fazer voz raivosa e deixar os erres entalar na goela como farinha. Mas com esforço ela conseguia. Os alemães achavam graça, como ela também se papocava de rir do português troncho que eles já começavam a falar.

Todos no hotel bateram palmas pra Podolski, o jogador que ensaiou os agradecimentos. Dali a dois dias, os alemães iriam enfrentar o Brasil em Belo Horizonte. Naná não queria admitir, mas sentia saudade quando eles saiam pra as partidas, e sempre torcia pra eles.

Dessa vez, apesar da simpatia pelos galegos, ela não tinha dúvida: estava do lado dos brasileiros. Mas ainda assim queria fazer um gesto simpático aos chucrutes. Naná sugeriu que a janta daquela noite incluísse uma lauta tábua de acarajés, dos mais variados sabores e tamanhos.

O chefe da cozinha do hotel adorou a ideia. E Naná, uma das melhores cozinheiras de Santa Cruz de Cabrália, talvez da Bahia, comandou a blitzkrieg culinária. Preparou os melhores acarajés de sua vida.

A alemãozada se fartou. Teve quem pedisse bis. Tris. “O melhorr comida do munda”, desmanchou-se Podolski, a essa altura o mais brasileiro de todos. Até chegou a confessar que já estava curtindo a maciota das nossas novelas, que assistia escornado numa rede. Naná ria e chorava, agradecida. Danq. Danq.

Naquela noite, a paz de Cabrália foi quebrada por uma artilharia de puns. Primeiro foi o próprio Podolski a se aboletar no trono. Depois foi a vez de Kroos. Em seguida, Schweinsteiger. E logo uma romaria de passos avexados tomava o caminho do banheiro, provocando um inesperado tráfego nos corredores do hotel.

Algo estava errado. Estava claro que a janta tinha abatido parte dos jogadores. O médico chefe da delegação foi acionado. A caganeira foi estancada com precisão alemã. Mas todos sabiam que algum estrago estava feito. E o pior: na véspera de um mata-mata.

Foi uma longa noite. Pela manhã, o técnico Joachim Löw conversou com os alvejados e ouviu deles que estava tudo bem. Os médicos confirmaram que tinha sido um probleminha digestivo. Mas nada que diminuísse a força da artilharia alemã.

A seleção foi para Belo Horizonte. Nos treinos, aqui e ali uma ida furtiva de um jogador ao WC. Joachim Löw observava com seu estilo low-profile. Como o calor não estava sopa, só podia ser isso, ele deduziu.

Chegou o 8 de julho, e daí aconteceu tudo aquilo que vimos sem acreditar. Naquele dia fatídico, o time alemão sofreu um apagão após ter tomado um gol do Brasil nos primeiros minutos. E os comandados de Felipão tiraram proveito do fato e empurraram mais quatro gols em seis minutos, diante de uma Alemanha perplexa. Em respeito à tradição germânica, tiraram o pé do freio. O placar poderia ter sido mais dilatado no primeiro tempo.

O placar final, Brasil 7 x 1 Alemanha, chocou o mundo. Segundo reportagem do jornal Deutsche Zeitung, a derrota nunca seria esquecida. Craque do passado, Franz Beckenbauer conclamava: “É preciso dar início a uma profunda reforma no futebol alemão”. O Mineirazo veio mostrar que o esquema tático da Alemanha, baseado na força coletiva, estava ultrapassado. Jogaram um oceano de euros fora investindo em planejamento, durante quase uma década. Era a vez de o Brasil impor sua supremacia, apostando no pensamento mágico e na sorte.

Lá de Santa Cruz Cabrália, Naná ria à toa das análises cabeçudas dos experts alemães e estrangeiros. Ela nem terminara o primeiro grau, mas sabia que a verdadeira história está nos pequenos acontecimentos cotidianos.

E não parava de repetir duas palavrinhas, como um mantra sagrado: “Danq, acarajé”.

_______________________________________

Glossário

Danq = obrigado em alemão-baianês.
Gut morg = bom dia em alemão-baianês.
Wi gets = “comé qui cê tá?” em alemão-baianês.
Blitzkrieg = Guerra relâmpago em alemão.