Edição 184 - Aracaju, 27 de Abril a 25 de maio de 2014

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Entrevista

Anatomia de uma crise
Livro descreve o crash da Bolsa de Nova York em 1929

Por Paulo Lima

Foto: Divulgação

Multidão se aglomera em frente ao prédio da Bolsa de Valores de Nova York em 1929

 

A quebra da bolsa de Nova York, em 1929, é um dos eventos mais dramáticos do século XX. Investidores milionários foram à bancarrota do dia para a noite, bancos faliram e milhares de trabalhadores perderam seus empregos. O crash deu origem à Grande Depressão dos anos 1930, atingindo as principais economias capitalistas do planeta, e acabou influenciando a ascensão do nazismo, que levou à Segunda Guerra Mundial.

O tema, normalmente reservado a economistas e historiadores, acaba de ganhar um relato humanizado com a publicação do livro 1929 (Editora Objetiva), do escritor Ivan Sant´Anna, que já explorou com sucesso os bastidores do mercado financeiro em obras como Os mercadores da noite, Armadilha para Mkamba e Rapina. Por meio da história real de pessoas famosas e anônimas, Ivan reconstrói aquele período no qual boa parte dos americanos, atraída pelo desejo de enriquecimento rápido e fácil, decidiu apostar suas economias em ações da bolsa. Histórias como as do comediante Charles Chaplin, que liquidou sua carteira de ações antes do crash; do compositor Irving Berlin, que apostou até o fim na bolsa e perdeu tudo (voltaria a recuperar anos depois); do engraxate Pat Bologna, que acabou virando uma espécie de consultor sobre as condições da bolsa, de tanto engraxar os sapatos de alguns grandes investidores e deles ouvir informações -; do carteiro Homer Dowdy e da adolescente Jolan Slezsak, que perderam suas economias. Todas elas acabam imprimindo um sabor romanesco a um assunto árido.

O livro mostra como a euforia econômica dos anos 20 nos Estados Unidos, os chamados Roaring Twenties, levou à convicção de que “todos deveriam ser ricos”, slogan alardeado pelo empresário e financista Jacob Jakob Raskob, idealizador e construtor do Empire State Building, marco da engenharia da época.

Foto: Facebook do autor

Ivan Sant´Anna: "O mercado sempre foi calcado na ganância e no medo"
 

Esse cenário otimista atraiu as pessoas para uma espiral desenfreada de ganhos rápidos. Estratégias, como a criação de consórcios, ajudaram ainda mais a popularizar e facilitar as condições daqueles que queriam dinheiro fácil, de tal modo que “alavancagem” virou uma palavra da moda, indo parar na boca até de investidores iniciantes. As próprias autoridades econômicas, através do FED, o banco central americano, contribuíram para o boom, ao baixar a taxa básica de juros da economia e adquirir títulos do tesouro. Jornalistas manipulavam informações sobre altas do mercado, muitas vezes subornados por investidores mal intencionados. Até mesmo uma astróloga, Evangeline Adams, em seu consultório no Carnegie Hall, dava palpites seguidos por investidores e especuladores.

O jogo pesado de Wall Street era desenvolvido por “touros” (bulls), investidores que apostavam na alta da bolsa, e em “ursos” (bears), aqueles que apostavam na baixa e por isso eram tidos como derrotistas. O livro 1929 mostra que, ao contrário do que se imagina, houve quem ganhasse com a quebra da bolsa, e que analistas e economistas desafiaram o coro dos contentes ao anunciarem que cedo ou tarde uma grande tragédia ocorreria.

Embora seja comum se referir ao crack de 1929 como um único episódio histórico, o livro esclarece que houve, na verdade, dois. O primeiro crash ocorreu em 24 de outubro, uma quinta-feira negra. O segundo, em 29 de outubro, uma terça-feira negra, quando os papéis das grandes corporações americanas, como a General Motors, a Paramount, a Warner Bros e outras simplesmente apodreceram e o mercado se esfacelou. Numa era ainda pré-keynesiana, o presidente americano Herbert Hoover simplesmente deixou que as coisas seguissem seu curso.

O livro destaca os nomes dos principais megainvestidores e especuladores de Wall Street na época, entre eles Joe Kennedy, pai do futuro presidente John Kennedy. Apesar de suas posições políticas – era simpatizante do nazismo e crítico da democracia –, o patriarca dos Kennedy fez fortuna burlando a Lei Seca que vigorou na década de 20 nos Estados Unidos e operando na bolsa. Foi um dos que ganharam com o big crash de 1929, situação confortável em relação a outros megainvestidores, que foram parar em Sing Sing (prisão de segurança máxima localizada no estado de Nova York), ou cometeram suicídio.

Aliás, a ideia de que a crise levou a uma onda sem precedentes do tresloucado gesto é um dos folclores sobre o tema. “O número de suicídios ocorridos logo após o crash foi apenas um pouco maior do que o normal, só que, como alguns participantes do mercado realmente se suicidaram, criou-se essa lenda”, disse Ivan Sant´Anna nesta entrevista concedida por e-mail.

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O que levou o senhor a escrever sobre a crise de 1929?

Desde os 18 anos de idade, quando comecei a trabalhar no mercado financeiro, sempre fui apaixonado pelo crash de outubro de 1929 e sempre li tudo que pude a respeito dele.

Quais foram as principais dificuldades que o senhor encontrou para escrever esse novo livro?

Para ser honesto, sendo um assunto que conheço bem, não tive maiores dificuldades para escrever o texto. Só demandou tempo, pois precisei ler extensa bibliografia, livros que adquiri na Amazon.

Como ocorreu ao senhor a ideia de mostrar o tema sob o ângulo de pessoas famosas, como Charles Chaplin, Irving Berlin, e anônimas, como o carteiro Homer Dowdy, o engraxate Pat Bologna e a adolescente Jolan Slezsak?

A ideia era de que 1929 não fosse um livro técnico nem acadêmico, mas uma história que pudesse ser lida como entretenimento. Daí tê-la narrado através de pessoas, famosas e anônimas, que viveram na época do crash e tiveram suas vidas influenciadas por ele. 

O livro mostra que o próprio FED (o banco central americano) colaborou com o entusiasmo dos especuladores ao “jogar gasolina na fogueira”, baixando a taxa básica de juros da economia. E no desenrolar do processo muitos analistas alertavam para um desastre iminente, uma tragédia anunciada. A crise poderia ter sido evitada?

Com certeza a crise poderia ter sido evitada. O FED entrou no clima de euforia vivido pela maioria das pessoas nos Estados Unidos que, nos Esfuziantes Anos Vinte, acreditavam estar erigindo uma sociedade onde todos seriam ricos. Se as autoridades monetárias daquela época coibissem a criação dos consórcios, o crash não teria acontecido ou teria sido muito menor.

Que paralelo o senhor faria entre as crises de 1929 e de 2008? Na época desta última, houve comparações entre os dois fatos históricos.

Perto da crise de 1929, que foi um câncer devastador, a de 2008 foi uma gripe. Entre outras coisas porque, nos últimos meses do governo Bush e nos primeiros da administração Obama, os Estados Unidos não mediram esforços para dar liquidez ao mercado, inclusive salvando inúmeras empresas - como a General Motors - da falência. 

De que forma sua experiência de quase 40 anos no mercado financeiro contribuiu para desenvolver o tema do livro?

Ter passado quase toda a minha vida trabalhando no mercado financeiro foi essencial para entender os acontecimentos de 1929 e poder redigir o texto do livro.

Como se explica que até megainvestidores na Bolsa se orientassem por palpites desprovidos de lógica como os da astróloga Evangeline Adams, e não apenas por eles, mas também por outras crenças, como a de que o comportamento das ações dependia da posição do sol?

Sempre existiu esse tipo de bobagem nas bolsas. Até hoje tem gente que acredita nessas asneiras e se guia por elas. Quanto a videntes, se eles têm credibilidade, funcionam. Explicando melhor: eles fazem profecias autorrealizáveis. Se dizem que o mercado vai subir e muita gente compra por causa disso, o mercado sobe mesmo. Embora não seja propriamente um vidente, George Soros se cansou de ganhar dinheiro com essas profecias autorrealizáveis. 

O senhor diz no livro que a onda de suicídios em massa provocados pela quebra da Bolsa não passa de folclore. A literatura romantizou demais o tema?

Com certeza. O número de suicídios ocorridos logo após o crash foi apenas um pouco maior do que o normal. Só que, como alguns participantes do mercado realmente se suicidaram, criou-se essa lenda.

Dos personagens mostrados no livro, qual impressionou mais o senhor. Por quê?

Joseph (Joe) Kennedy. Ele foi um gênio (quase sempre do mal). 

O livro traz como epígrafe uma frase do megainvestidor americano Warren Buffet afirmando que a estupidez, a ganância e o medo são as três grandes forças que regem o mundo. Essas forças explicariam cabalmente a tragédia de 1929?

Com certeza. O mercado sempre foi calcado na ganância e no medo e em 1929 não foi diferente. A volúpia com que se compra tem a mesma intensidade do pânico que motiva as vendas.