Edição 183 - Aracaju, 30 de Março a 27 de Abril de 2014
Crônica
Por Victor Lima
No início havia uma bola vermelha da cor do sol dos desenhos animados. Era tão leve que não nos fazia pender pro lado em que a segurávamos — a esfera de plástico no triângulo do bracinho pré-escolar no início do recreio ou no último período da sexta-feira, quando se sujar era mais que a transgressão de todos os outros dias, agora uma permissão, uma obrigação: chegar em casa emporcalhadinhos e mesmo assim ganhar beijo da mãe (você não liga que eu tô suado mãe?), toquinhos de gente (eu que não beijava você assim hein mãe), banguelas aqui e ali no sorriso de quem é amado mesmo suado. Nos trabalhos de artes desenhávamos em folhas de ofício a bola (pintada de vermelho) e nos representávamos com cinco traços (braços, pernas, tronco) e um círculo (a cabeça) espetado no risco vertical; por fim os desenhos eram pendurados — como uma bola enganchada na árvore — no varalzinho da pró logo abaixo dos cobogós da sala.
Precisávamos contar com a ajuda do vento (senhor vento por favor desapareça) na época da bola-vermelho-sol, tão leve que era, chutávamos a teimosa e a teimosa ia aonde queria, às vezes mais longe do que devia, às vezes morria no meio do caminho; olha que só tínhamos uns cambitinhos curtos de nada, força cadê, os mais novos da escola, os vermelhinhos (ref. cor da farda, dos grandões tinha detalhes azuis e a nossa advinha, pois é).
A bola-vermelho-sol vinha num saco plástico transparente, várias delas passaram por nossas mãos e pés e cabeças, várias bolas caídas por cima do muro da velha bruxa vizinha da escola, ela jamais nos devolvia a bola, que bruxa. Tá, nem tudo é culpa da verruguenta, acontecia de a bola ser espetada por um espinho da roseira de dona Julieta, por exemplo, e aí a bola fazia um som estranho e triste e feio, tipo um chorinho, fueeeeeen, murchando, morrendo a coitada, aí só sobrava mesmo o plástico vermelho porque agora o ar estava no ar e nós pensávamos puxa estamos respirando a bola. Sobrava só o plástico vermelho da bola-vermelho-sol, usávamos o troço em nossas cabeças, dar susto e fazer medo às chatas das meninas. Elas nem se assustavam nem nada, as bobocas, brincando de bambolê ou baleado, a bola-vermelho-sol delas boazinha, assim, viva, cheinha, e o que nós nos aproximávamos aos pouquinhos, iguaizinhos a nossos cachorrinhos faziam em casa com cara de pidão, a pró nos olhava com dó, um sorrisinho que uau tão bonitão, a boca pintada da cor da bola da cor do sol dos desenhos animados. Que houve meninos? ela perguntava. A bola, lamentávamos. Que pena, ela lamentava. Podemos brincar com as meninas? não perguntávamos. Brinquem com as meninas, ela sugeria. Eca nós não hein, respondíamos, fingidos, chutando birrentos a areia, vendo os cambitos das meninas tão finos quanto os nossos mas tão bonitos, uns lindos pelinhos quase invisíveis, aquilo nos deixava assim estranhos, elas ficavam com eles de fora, os cambitos, assim uma saiazinha branca plissada, mas elas usavam um shortinho por baixo, é claro, que pena, he he, nós já confusos atordoados encantados apaixonados, epa, não não, com nojo com raiva argh! isso sim. Tá certo, aceitávamos, nós brincamos com elas (elas também desaprovando a ideia), mas meninos contra meninas, exigíamos, na costumeira e babaca separação homem x mulher.
Mas sempre tinha o pai e a mãe legal pra nos comprar uma nova bola-vermelho-sol, brilhando de tão nova dentro do saco plástico. Delícia rasgar o saco plástico com os dedinhos minúsculos e sujos de meleca, terra ou tinta guache. Calma, meninos, a pró dizia, podíamos precisar guardar a bola e aí como seria? Quem sequer pensava nisso? Às vezes ficávamos com pena de inaugurar a bola e a chutávamos um pro outro dentro do saco plástico mesmo. Até alguém criar coragem e rasgar o saco e largá-lo em qualquer canto, dona Didi varria depois.
Não poucas vezes dávamos azar com os idiotas do ginásio. Volta e meia faltava um professor deles (eles tinham vários e não apenas uma pró!). Aula vaga dos grandões coincidindo com nosso recreio, azar o nosso. Eles ocupavam a quadra, os pés enormes metidos em tênis maneiros pisando no cimento da quadra feito donos. Nós olhávamos pra eles lá de baixo, mal chegávamos à altura da cintura, o pescoço já doendo e nós tentávamos manter a cara de mau, mas aí o sol doía nos olhos, ficávamos mesmo era com uma careta diante dos gigantes risonhos. O horário é nosso, é nosso recreio, argumentávamos. Em resposta ganhávamos uma imitação das nossas vozes fininhas e um cascudo e uma esfregada nada carinhosa no cabelo. Daqui que a pró chegasse, ela batendo papo com alguma outra pró bem longe, nossa bola-vermelho-sol já havia sido chutada um milhão de vezes pelos grandões, nos fazendo de bobinhos, rindo de nossa cara, nossa partida interrompida, atrapalhada — de nada nos adiantava a pró chegar e expulsar os idiotas da quadra, nosso recreio já estava acabando e o máximo que podíamos fazer era esperar pelo dia em que um deles, dos grandões, fosse bater na porta da nossa sala cheio de por favor, nos chamando de amigões, pedindo nossa bola-vermelho-sol, a mesma que todos eles desdenhavam, pedindo emprestada, ora, ora, por falta de outra bola qualquer, veja só. Aí eles iam ver. A pró diria isso não é bonito, é feio ser vingativo, ficaríamos envergonhados, não queríamos ser feios vingativos, então negociávamos, primeiro passávamos na cara do grandão ali como representante dos grandões malvados — e não é feio ser um grandão malvado? perguntávamos à pró. Só emprestaríamos a bola se o grandão de bigodinho (uau ele já tem bigode igual homem, igual pai) prometesse nunca mais invadir a quadra quando estivéssemos jogando. Ele prometia, nós nos reuníamos numa rodinha — as meninas admiradas pelo grandão malvadão bonitão que já tinha bigode e tudo, — aí chegávamos ao veredito, tá certo, mas ó lá hein, promessa é promessa. Mas os grandões eram uns baita duns mentirosos, isso sim, nunca cumpriam com a droga da palavra.
A bola-vermelho-sol foi deixada de lado junto com a farda dos vermelhinhos. Agora éramos grandinhos e usávamos farda com detalhe azul igual aos grandões. Nós éramos o máximo e precisávamos duma bola à nossa altura. Nossa, como é legal, comentávamos, quando segurávamos a bola que era da mesma cor da borracha dos nossos lápis, pelo menos até ficar suja, né. Aí sumia o nome da marca escrito de preto, sumia também nosso nome escrito à caneta na caligrafia tosquinha de quem não está acostumado a escrever num lugar redondo e sem o apoio da mesa. Caramba, que bola boa, nós chutávamos e o vento nem levava ela como bem queria, não fazia igual às bolas de assoprar dos nossos aniversários com tema do Pica-pau, Cavaleiros dos zodíacos, Pikachu. Ficávamos cansados bem mais rápido, também poxa, precisávamos usar bem mais a força das canelas, o tamanho da bola desproporcional ao nosso tamanho, nada legal ser goleiro nessa época, nada legal levar uma bolada com aquela bola, na barriga então, eita que dor, às vezes ficávamos alguns segundos sem conseguir respirar e tudo, sem nem poder falar e reclamar com o outro, ei ô! não vale bicuda porr...ete! O que havia mudado: a farda, a bola e o vocabulário — estávamos cada vez mais próximos do nosso primeiro e subversivo porra.
A rivalidade com as meninas agora dividida com os alunos da sala ao lado, contra quem jogávamos nos recreios, nas aulas de educação física, nos campeonatos. Era tipo Brasil e Argentina, Fla-Flu, Real Madrid e Barcelona. Beijávamos a bola-cor-de-borracha-de-lápis, nem aí se ela estava suja, se havia passado na lama, caído no mato, o importante: converter o pênalti, fazer o gol, sair cheio de marra, fazer a comemoração ensaiada sozinhos em casa ou com os colegas na sala de aula — o gol o único momento em que nós nos abraçávamos sem achar constrangedor —, o dedo indicador nos lábios, que o adversário ficasse caladinho, a mão fechada batendo no peito, no escudo do time (o símbolo da escola), corrida comemorativa de volta ao nosso lado da quadra, as meninas da sala nos vendo (desejávamos; na verdade estavam de olho nos carinhas grandões, droga, sempre eles). E quem disse que, ao fim da partida, valia de alguma coisa a segurança de segurar a bola imunda debaixo do braço ou carregá-la por baixo da farda feito grávido, eca que nojo, vocês estão fedendo, a queixa das meninas, tá, estávamos pingando suor, a camisa branca não mais branca, manchada de boladas e quedas, mas caramba, nós éramos guerreiros, às vezes até sangrávamos um tiquinho, às vezes um bocadão (olha aqui minha camisa manchada), estávamos suando e sangrando por causa da guerra, e se havíamos vencido merecíamos o reconhecimento delas, das meninas, os parabéns, o orgulho, poxa, havíamos defendido o nome da nossa turma, e, em caso de derrota, precisávamos de um consolo, olhares compadecidos, uma balinha ofertada, um sorriso, um comentário tipo achei lindo aquele gol ou nossa que defesa aquela você não tem medo de colocar a mão na bola não? Só pra dizermos que nada nem foi um gol tão bonito assim ou: aquela defesa? pff bobagem foi fácil aquele boboca chuta que nem uma mãe.
Não havia mais pai nem mãe tão dispostos assim a nos dar centenas de bolas a todo momento. Seria ela tão mais cara que a bola-vermelho-sol? Se chutávamos a bola por cima do muro da escola fazendo a redonda cair lá na rua, puts, nem comemorávamos a força adquirida recentemente. Tampouco se a bola parasse antes nos grampos e cacos de vidro do muro. Em casa a paciência já não era a mesma, afinal que notas são essas moço? A mãe nem dava mais beijo quando chegávamos suados, só queria saber se aquilo eram horas, quase uma da tarde, e olha o estado dessa farda! pois você vai com ela assim amanhã pra aprender, não sou sua empregada, ainda não é nem quarta-feira! Mãe fiz três gols hoje tô na artilharia da sala com cinco gols na frente do Bufão ele diz que no dia que faltei por causa da febre ele fez quatro gols então só tá um golzinho atrás de mim mas é mentira que o Cabeça de Nós Todos me contou. E a mãe nem aí. No máximo queria saber por deus quem era Bufão e Cabeça de Nós Todos, isso lá é modo de chamar o colega? E ninguém tem culpa se um bufa a aula inteira e se o outro atrapalha a visão do quadro com aquele cabeção? Aí o papo morria, não sem antes rolar o pedido (em vão) da bola nova, porque o Samambaia tinha pocado a bola mãe. Menino me deixe, começava a resposta, e vá tomar banho esfregue bem essas orelhas e lave o pinto direito ou quem vai lavar sou eu!
No ginásio o pinto já era pau, a bola não mais de borracha mas de couro, os jogos cada vez mais técnicos. Jogar com bola de couro, ainda que fosse uma tipo campo usada na quadra consistia numa experiência sem igual. Era A MESMA bola que os profissionais jogavam na televisão! Quando a bola de couro já estava toda estragada, os pontos estourados, desaparecida a camada exterior cheia de detalhes bonitos e coloridos com nomes de marcas importantes e caras e invejáveis, não, não a jogávamos fora. Nessa época sabíamos da nossa pouca moral em casa (as notas verdes no boletim só um motivo). Muitas vezes o dinheiro precisava ser arrecadado entre nós — muitos recreios sem lanche. Por isso usávamos a bola até o último instante possível: a bola toda descascada, um trapo, o couro à mostra, muitas vezes até mesmo o couro aberto e a câmara de ar aparecendo. A despedida ocorria quando jogávamos apenas com a câmara de ar. Aí já não nos submetíamos aquilo, precisávamos ter o mínimo de dignidade, não ficava bonito pra nossa cara, não éramos mais os vermelhinhos, éramos os grandões, ou não éramos? Quando a fome de bola chegava a um nível insuportável, quando a abstinência nos deixava malucos de pedra, aí recorríamos aos vermelhinhos, com nossos bigodinhos e por favor e promessa de nunca mais invadir a quadra quando eles estivessem jogando, nem imitar a voz deles, nem dar cascudo nem esfregão no cabelo, os vermelhinhos reunidos em roda, a cúpula.
Continuávamos magricelas e desinteressantes pras colegas de sala, que haviam desenvolvido peitões, bundões, pernões, PU-TA-QUE-PA-RIU. Mas elas estavam interessadas mesmo nos caras do segundo grau. Não percebíamos que as colegas de classe seriam, para 99% de nós, sempre inalcançáveis. Às vezes elas sentavam no tanque ao lado da quadra, por pura falta do que fazer nas aulas vagas, nos assistiam jogar — nós jogávamos como se fosse final de Copa do Mundo. Às vezes até gritavam quando saía um gol. Muitas vezes riam quando perdíamos um gol fácil ou pisávamos na bola. Mas no geral estavam muito ocupadas beijando os caras mais velhos atrás do salão de jogos ou dentro da sala (a amiga vigiando a porta), nunca existia assim a chance ou a coragem de dedicarmos declaradamente o gol à menina de quem gostávamos a ponto de a) sequer ter coragem de bater uma punheta por ela ou b) a ponto de ficar com o pau em carne viva por tanta homenagem no cinco contra um.
O 1% de nós que tinha sorte com as meninas da sala ou com as meninas das salas inferiores, às vezes trocava a bola pela remota possibilidade de apalpar os seios redondos da menina em questão: o que nunca acontecia, ou quando acontecia — assim como uma passada de mão na bunda — acontecia uma única vez, porque a menina colocava em prática o procedimento padrão aprendido pelos pais (pela sociedade): tapa na cara e nunca mais olhe na cara do garoto safado que tentar tocar em seu corpo não importa se você achar bom. Noventa e nove por cento puto da vida com um por cento, no fundo pura inveja, claro. Às vezes faltava gente pra completar os times, porque ficar de pau duro, beijar lábios fresquinhos e carnudos, sentir outra língua com sabor de morango ou com gosto de gloss, nossa, quem preferia correr atrás de bola e voltar suado pra aula de matemática (o caderno feito abanador)?
No segundo grau os jogos cada vez mais raros. A quadra mais abandonada que nunca — por nós. A bola largada na secretaria, no armário, no quartinho da bagunça, em baixo da cama, murchando murchando murchando. A preocupação agora não ficava apenas em tentar usar o máximo de camisinhas possíveis, mas também passar de ano e decidir o quanto antes qual vestibular faríamos. As táticas do jogos de outrora, esquematizadas na última folha do caderno, quem vai jogar, em que posição, qual jogada-surpresa será executada, tudo deu lugar a testes vocacionais e a questões de vestibular. Todos nós já havíamos desistido de ser jogador de futebol, o novo craque do Brasil, camisa dez da seleção, já havíamos esquecido as decoradas respostas das entrevistas quando fôssemos eleito melhor do mundo, massacrados pelas cobranças e pelas angústias (que difícil ser adolescente), perguntas filosóficas não faltavam. E Shakespeare e seu ser ou não ser. E Capitu botou chifre ou não em Bentinho? E se eu não passar no vestibular, vou ter que trabalhar no comércio vendendo sapato e roupa.
Hoje já não nos reunimos mais em quadra nem fora dela. Não há gol, não há abraço, não há pelo que comemorar. Que fim teve aquela bola não sabemos, não sabemos sequer como era a última bola. Qual foi nosso último gol não sabemos, o último drible, o último passe, a última queda, o último arranhão, a última comemoração. Não sabemos qual foi a última vez em que entramos em quadra sem saber que seria a última. Não sabemos onde está cada um de nós. Onde está a pró do pré não sabemos. Não sabemos onde está o goleiro adversário que tantas vezes precisou andar cabisbaixo até o salão de jogos (corre logo merda!), buscar a bola após um gol porque rede as traves não tinham. Onde estão os primeiros lábios que beijamos, os primeiros seios que sentimos contra nossos peitos raquíticos, a mão que fez formigar pela primeira vez nossa cara imberbe não sabemos, não sabemos, não sabemos.
Não sabemos de nada mas cada vez mais temos a certeza que sim.
(Sempre haverá vermelhinhos, prós, as coleguinhas, bolas e grandões da vez. Pelo menos isso, talvez um conforto, vai saber).
Uma história que se repete.
Victor Lima é estudante de jornalismo.