Edição 183 - Aracaju, 30 de Março a 27 de Abril de 2014

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Música

Diva folk
Assistindo a Joan Baez no Rio

Por Paulo Lima

Foto: Divulgação

Joan Baez nos anos 1960

 

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O mês de março estava na metade. Bati o olho no jornal e li. Joan Baez estava vindo ao Brasil. Ia se apresentar em Porto Alegre, Rio e São Paulo. Depois abriram pra Recife, mas isso foi depois.


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A ficha demorou a cair. Joan Baez? No Brasil? Bem nas minhas férias? Com ingressos a preços convidativos?


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Corri ao site do ingressorápido. Porto Alegre era longe. Em São Paulo a lotação estava esgotada. Eu planejava mesmo ir ao Rio. Ainda havia ingressos lá.


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Consegui dois ingressos bem no fundão da plateia alta do teatro Bradesco, no Village Mal, na Barra. Estava correndo o risco de ver a musa folk a milhas de distância. Mas ia valer assim mesmo.


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O dia do show chegou. Calor do demo no Rio. Eu e minha mulher decidimos sair cedo do hotel. Sei que a Barra é longe a perder de vista. Mas longe é refresco se somarmos o longe ao trânsito absolutamente impossível da Barra.


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Foi uma África chegar lá. Cometemos a besteira de tomar um buzo que percorreu o planeta inteiro. A zorra da cobradora deu uma informação errada. Daí, apelamos prum táxi. O taxista zoava. Calma que vocês vão chegar na hora. Pra piorar, tava ameaçando chuva.


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Chegamos. Três horas depois. Fomos retirar os ingressos na bilheteria. Ufa.


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Agora era jantar e gastar sola de sapato no gigantesco Village Mall, um shopping granfo.


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Primeira dúvida cruel. Toda aquela zoada dos 60 pra vir soltar a voz num shopping burgo, Joan?


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Por sorte o diabrete crítico desapareceu e tratamos mesmo foi de curtir e esperar a hora do show marcado pra as 21:30.


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Vez por outra eu descia os dois vãos de escada rolante e ia lá checar o vaivem na entrada do teatro. Estava tudo calminho. Alguém retirava o ingresso e desaparecia.


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Imagens dos sixties rolavam na filmoteca de minha mente. Nelas estavam Dylan, Joan Baez, Pete Seeger e toda aquela trupe. Bandeirinhas e gritos de ordem ecoando na marcha sobre Washington. Woodstock. Janis. Hendrix. Flower power.


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Faltando uma hora pro show, o acesso ao teatro foi liberado. Remanescentes do sonho hippie chegando devagarinho. Melenas alvinhas como algodão. O foyer sendo ocupado aos poucos. Lá e aqui, porém, jovens e adolescentes. A longa vida dos anos 60.


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Então o abre-te sésamo. O acesso à plateia foi autorizado. Surpresa: não íamos ficar longe do palco.


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Era uma festa dentro da festa. Todo aquele burburinho delicioso que antecede o show. As poltronas sendo preenchidas aos poucos, como em slow motion.


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No palco, o violão cerimoniosamente pousado ao lado de um microfone no centro. À direita de quem entra, uma pequena parafernália rítmica. À esquerda, um piano, banjos e outros instrumentos.


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Tic tac tic tac tic tac. É daqui a pouco.


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De repente, uma ovação. Quem? Onde? Joan Baez? Nani, nani, era Milton Nascimento que adentrava o recinto. Retribuiu com um aceno de mão e foi se postar lá ao lado de Gilberto Gil. Por lá ficaram, conversinha miúda.


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Tic tac tic tac tic tac. É já.


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Então, o aviso sonoro religiosamente desobedecido. Celulares desligados, fotos e filmagens proibidas et cetera.


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Segundos de suspense. Tic tac...


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É agora! Aquela mulher que vem deslizando lentamente saindo lá do fundo do palco, um sorriso discreto nos lábios. É ela!


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Vem vindo vem vindo. Vai até o microfone. Para.


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Aplausos. Aplausos. Aplausos.


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Uma agitada garota gordinha ajuda com o violão. Joan Baez deixa-se envolver, como num abraço. Testa a melhor posição. Está pronta. Fala a primeira de muitas frases a serem ditas naquela noite: “Good evening”. Um holofote direcional despeja sobre a figura esguia de Joan Baez um jato de luz branca.


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Os aplausos cessaram. Seria possível ouvir até o zumbido de uma mosca.


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Joan Baez segura uma folha de papel. Lê sobre a primeira canção da noite, “God is God”, num português arrevesado, mas compreensível. Ao longo do show, irá proceder assim antes de cada música.


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A magia está começando. A voz de Joan Baez soa clara, forte e bela. O som do teatro é perfeito.


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Os anos 1960 estão ali, e é como se eu pudesse tocá-los.


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A plateia está hipnotizada.


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O repertório da noite tem sabor essencialmente sessentista, mas a musicalidade de Joan Baez é uma prova de que a grande arte é atemporal.


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Joan Baez está vestida de forma sóbria e elegante. Sapato vermelho combinando com echarpe de mesma cor. Blusa e calça Jeans. Cabelos brancos cortados curtos. 73 anos de idade. Impossível não concordar: o tempo tem sido generoso com ela.


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Flashback rápido: Joan Baez no documentário “Dont look back”, de D. A. Pennebaker. Ela como namoradinha de Bob Dylan, na segunda e vitoriosa turnê dele à Inglaterra.


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Aquela jovem mulher de tez morena, cabelos negros e essa senhora simpática e jovial são a mesma pessoa? São, separadas apenas pelas marcas indeléveis da experiência e do tempo.


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Música, mito e memória se misturam em minha cabeça.


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O check-list é longo. Joan Baez ampliou uma empatia já natural com o público ao entoar alguns clássicos de nosso cancioneiro. O tom político da noite foi dado com a inclusão de músicas como “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré. Por pouco, tanques do exército não se colocaram ameaçadoramente ao redor do teatro.


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Joan Baez foi impedida de cantar no Brasil em 1981, durante sua primeira turnê pela América Latina. Um viés de inconformismo permeia sua música e suas atitudes desde sempre. É o que se pode chamar de artista engagé.


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Confesso. Admito. Fiquei derretidíssimo, quase choramingas, quando, ao lado de sua ótima banda, Joan Baez entoou (não tem palavra melhor) a plangente e emotiva “Deportee”, canção do recém-falecido Pete Seeger que fala de imigrantes mexicanos vítimas da crueldade do sistema. A impressão é que Joan Baez alinhou a voz e o coração inteiros nessa interpretação. Você quer fazer o teste? Vá no youtube e cate essa canção. Só que eu a ouvivi ao vivo e em cores em high definition. Então, tire suas conclusões.


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Em três momentos, Joan homenageou o ex-Bob. Cantou “Farewell, Angelina”, “It´s all over now, Baby Blue”, e claro, claro, “Blowing the wind”. Esse vento é imorredouro.


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O coração humanista de JB não deixou barato. Ela emplacou “Gracias a la vida” (tá, ninguém canta essa como Mercedes Sosa), e conseguiu criar um refrão introdutório baeizante que injeta uma leveza quase juvenil a esse hino latino-americano.


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Aliás, no quesito hinos forever não faltaram “Imagine” e “The boxer”. Se era para inebriar, saímos todos bebuns, trocando as pernas, em altíssimos espíritos.


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Em sua turnê latina, JB chamou ao palco cantores-símbolos de cada cidade/país por onde passou. No Rio de Janeiro, subiram ao palco para improvisos deliciosos Milton Nascimento e Gilberto Gil. Por que você acha que eles estavam lá sentadinhos e mui bem comportados?


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Foi bem bacana quando cantaram a provecta “Cálice” dum jeito bem caloroso e emocionante. Ao final, JB tascou um beijo demorado em Milton. Foi duca mesmo.


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E como é que a gente consegue ir embora dum show assim? A gente vai, mas fica, né? Os sons e as lembranças colados na cútis como chiclete para todo siempre y siempre.