Edição 178 - Aracaju, 10 novembro a 08 de dezembro de 2013
Cultura
Por Carlos Alberto Mattos
Foto: Carlos Alberto Mattos
Escultura inflável à frente da Igreja de San Giorgio Maggiore
A Bienal de Veneza, criada em 1895, é a mais célebre exposição de arte contemporânea do mundo – não tanto para o mercado, que tem na Art Basel (Suíça) o seu maior centro anual de negócios, mas para conoisseurs e consumidores de arte que podem combinar o evento com a fruição de um dos maiores destinos turísticos do mundo. A cada ano ímpar, entre junho e novembro, Veneza é simplesmente a mais bonita galeria de arte do mundo.
A 55ª Bienal terminará no dia 24 de novembro. Quem visita a cidade nessa época presencia os mais incríveis contrastes entre obras de arte e cenário. Esses contrastes não são visíveis nos espaços principais da Bienal – os Giardini e o Arsenale. Nesses dois grandes complexos encontram-se os pavilhões nacionais, programados pelos respectivos países, e dois vastos pavilhões centrais com curadorias contratadas diretamente pelo evento. No Giardini e no Arsenale, a poucas centenas de metros da Piazza San Marco, as obras ficam relativamente confinadas em galpões, sem uma relação de confronto nem composição com a cidade.
Uma dinâmica mais sugestiva se dá nas chamadas exposições colaterais, que acontecem em locais diversos de Veneza durante a vigência da Bienal. Ali é que se pode saborear as interações possíveis entre os trabalhos de arte contemporânea e o cenário urbano clássico, medieval e gótico. Igrejas, palácios e até repartições públicas recebem quadros, esculturas e instalações de várias partes do mundo, promovendo uma ressignificação maciça de recintos e características arquitetônicas.
Um exemplo ostensivo exposto aos olhos de todos os que chegam pelo Canal Grande é a escultura inflável Breath (Alison Lapper Pregnant) - foto acima - do britânico Marc Quinn, postada à frente da Igreja de San Giorgio Maggiore na ilha do mesmo nome, bem em frente a San Marco.
Marc Quinn explora questões ligadas à relação entre arte e ciência e ao corpo humano face à doença, à sobrevivência e à morte. Outros trabalhos dele foram expostos na ilha, mas quando estive em Veneza, em outubro, só permanecia essa imensa Breath, de 11 metros de altura. Ela é uma réplica inflável de outra peça de Quinn em mármore. Retrata a artista Alison Lapper, nascida com focomelia (talidomida), em seu período de gravidez. A colocação da obra em frente à igreja gerou polêmica com as autoridades católicas venezianas, mas foi mantida no lugar. Todas as noites, a escultura é desinflada e repousa vazia sobre o pedestal para ser inflada novamente na manhã seguinte.
O giardinetto lateral do Palazzo Cavalli-Franchetti, à beira do Canal Grande e ao lado da Ponte della Academia, recebeu a cabeça Rui Rui, do catalão Jaume Plensa.
Foto: Carlos Alberto Mattos
Palazzo Cavalli-Franchetti
Rui Rui tem traços orientais, mas se assemelha em perspectiva e proporções à "africana" Awilda, que ficou exposta por vários meses do ano passado na enseada de Botafogo, no Rio de Janeiro. Essa é mais uma das cabeças étnicas de Plensa. Os olhos fechados de Rui Rui convidam à meditação num dos trechos mais movimentados de Veneza.
O italiano Rudolf Stingel, radicado em Nova York, ocupou literalmente o Palazzo Grassi, que pela primeira vez dedicou todos os seus espaços de exposição a um só artista. Ele revestiu completamente as paredes e pisos do palácio com carpetes inspirados em padronagens orientais.
Tela de Rudolf Stingel
A foto acima dá uma ideia de como convivem os carpetes e uma tela de Stingel sob o teto luxuosamente trabalhado do palácio. Caminhar por essas dependências inteiramente forradas é como percorrer um labirinto em que épocas, estilos e materiais se confundem numa experiência de atemporalidade. Rudolf Stingel cria indiferenciações entre artesanato e material industrial. Costuma cobrir superfícies enormes com revestimentos metálicos ou de têxteis e sobre eles incrustar outros trabalhos de feição mais tradicional.
Efeito semelhante surtem as esculturas em papel da alemã Lore Bert, dispostas no salão monumental da Biblioteca Nazionale Marciana, num dos vetustos prédios da Piazza San Marco.
Foto: Carlos Alberto Mattos
Biblioteca Nazionale Marciana
O trabalho foi realizado especificamente para o prestigioso local, que abriga um dos maiores tesouros bibliográficos do mundo, com iluminuras e obras raras dos séculos XVI a XIX. O volume do mar de papel contrasta com sua simultânea leveza e com a decoração renascentista do século XVI. Cinco poliedros espelhados criam reflexos que multiplicam a papelada e seu entorno. Além disso, onze retábulos estão dispostos em torno da instalação central, cada um confeccionado em dobraduras de papel oriental e folhas de ouro.
Também na Piazza San Marco localiza-se o Museu Correr, com seu gigantesco acervo histórico de Veneza. O museu está abrigando o pavilhão de Cuba na Bienal e diversas obras isoladas, sempre em estreita interação com o acervo fixo. Uma delas é o vídeo Minino Macho – Minino Fêmea, do português Pedro Costa.
Foto: Carlos Alberto Mattos
Video do português Pedro Costa
O contraste aqui é apenas relativo. Apesar da inserção brutal da tecnologia e da virtualidade, os rostos filmados por Pedro Costa exibem uma placidez de alguma maneira compatível com a estatuária clássica da sala. Os planos silenciosos e em extremo slow-motion chamam à contemplação. São materiais remanescentes das filmagens de O Quarto de Vanda (2000) no bairro lisboeta de Fontainhas.
Vale a pena registrar que todo o pavilhão cubano está instalado no Museu Correr e dialoga com as muitas temporalidades expostas no museu. O mote curatorial dos cubanos é justamente "A Perversão dos Clássicos: A Anarquia das Narrativas".
No interior da igreja de San Giorgio Maggiore, bem no centro do transepto da nave, está instalado esse trabalho do designer minimalista inglês John Pawson.
Foto: Carlos Alberto Mattos
Trabalho do designer inglês John Pawson
Aqui o choque é entre a arquitetura renascentista de Andrea Palladio (século XVI) e a peça de cristal Swarovski, que inevitavelmente associamos à indústria da moda e da decoração. O círculo de cristal fica numa espécie de mesa e reflete como num caleidoscópio as colunas, arcadas e abóbadas da igreja beneditina. Consta que essa é a maior "lente" já fabricada pela Swarovski.
Por fim, um dos salões principais da Punta della Dogana ocupado pela obra Gap of the Entrance to the Space, do japonês Kishio Suga (em primeiro plano).
Foto: Carlos Alberto Mattos
Salão da Punta della Dogana
A Punta della Dogana (Ponta da Alfândega) é um imenso prédio em formato triangular na extremidade do bairro de Dorsoduro, guardado pela monumental Igreja de Santa Maria della Salute. A antiga alfândega foi renovada pelo arquiteto Tadao Ando para abrigar obras do acervo da Fundação François Pinault, magnata francês e um dos maiores colecionadores de arte contemporânea do mundo. O minimalismo da maioria das obras ali expostas não contrasta, antes dialoga com as paredes rústicas e os espaços amplos da Dogana.
Carlos Alberto Mattos é crítico de cinema e pesquisador. Mantém o blog Rastros de carmattos.