Edição 172 - Aracaju, 26 de maio a 23 de junho de 2013
Ensaio
Por Paulo Lima
1.
Marx escreveu que o homem só pode isolar-se em sociedade. Posso perfeitamente decodificar a frase do alemão e aplicá-la aos propósitos destas breves considerações sobre as cidades. Somente numa cidade você é capaz de ter acesso a uma gama de recursos sem grande esforço. Você simplesmente dá um telefonema, e tudo pode estar em suas mãos.
2.
Faz muito tempo que deixamos a vida rural para trás. Demos o grande salto urbe et orbi. O charme rural ficou reservado a certa Arcádia poética, ou àqueles que extraem do torrão agrícola seu sustento inadiável.
3.
Hoje somos todos citadinos. Há, contudo, uma curiosidade. Estamos na cidade, mas não estamos na cidade. Na verdade, transitamos por um dado espaço da cidade. Delimitamos nosso arco vital em torno de determinados roteiros. Esse espaço vital é o bairro. Vamos de casa para o trabalho e retornamos. Dali saímos e para ali voltamos. O bairro e a casa são nossas referências primordiais na cidade.
4.
O historiador Simon Schama, em seu livro Paisagem e memória, afirma que a natureza é uma construção cultural. A cidade também resulta de nosso olhar idiossincrático. Por que nos enamoramos da imagem de uma highway americana e não da Torre Eiffel, ou o contrário? Ocupar determinada cidade pode ser fruto de uma escolha ou de uma contingência. Seja numa ou noutra situação, acabamos por nos moldar às circunstâncias daquela cidade e com ela manter uma relação amigável ou não.
5.
Uma cidade pode ser mais interessante à medida que você estabelece ali seus marcos afetivos. Se você tem bons amigos numa cidade, ela pode vir a ser a melhor cidade do mundo. Igualmente se nela existe um restaurante que um dia lhe proporcionou uma experiência gastronômica inesquecível, ou ainda uma paisagem natural ou urbana capaz de provocar um momento de êxtase.
6.
Por outro lado, uma cidade pode se tornar o pior dos mundos para o residente ou para o turista acidental, cabendo a este último a primazia de um não regresso. Conheço pessoas que jamais poriam os pés em Tóquio ou no México DF, por receio antecipado de terremotos. Numa escala que pode atingir o infinito, terremotos podem representar, de fato, um mau momento. Mas podíamos eleger ainda muitos outros, como assaltos ou variações extremas de temperatura.
7.
Quais seriam as melhores cidades do mundo? Esta é uma questão para a qual cabem infinitas respostas, como círculos concêntricos em expansão. Mas, acredito que para a maior parte das pessoas a melhor cidade é aquela com o poder de proporcionar uma boa relação custo-benefício. Como vivemos em tempos mediados pela riqueza que cada um é capaz de produzir, uma boa cidade pode ser aquela na qual as oportunidades econômicas trazem potenciais elevados de realização. Numa palavra, uma cidade que oferta bens e estimula o consumo.
8.
De repente, a melhor cidade do mundo é aquele na qual jamais pisamos os pés, mero produto da infinita capacidade que temos de fantasiar. Essa cidade pode ser Paris ou Nova Iorque, mas estou apenas seguindo a corrente dos rankings turísticos estabelecidos. O conceito de bom ou ruim é um valor intrínseco ou tem uma correlação histórica? Um morador de Damasco não pode sentir amor por sua cidade, apesar de seu atual entorno bélico? Uma pessoa pode perfeitamente viver trancafiada numa torre do passado, apesar dos evidentes sintomas de inadaptação. Por exemplo, o Rio de Janeiro dos anos 50. Isto se chama saudosismo ou passadismo. Ou é apenas um quadro pendurado na parede mental?
9.
Cada vez as pessoas moram mais em seus bairros, que elas tentam proteger como extensão de suas casas e apartamentos. É um senso de coletividade restrito. Bairros exclusivos high-tech com alto nível de luxo e segurança capazes de resistir ao impacto de um meteoro. Esta é mais uma ilusão que as cidades oferecem a seus cidadãos, como o conteúdo enganoso dos letreiros de neon.
10.
É interessante observar como existe sempre uma cidade oficial e outra real. A cidade oficial é projetada nas pranchetas dos governantes, como amálgamas feitos para durar a vida inteira. Mas a dura realidade cotidiana desfaz as ilusões arquitetônicas. As pessoas acabam traçando seus caminhos em razão de suas necessidades. É muito engraçado ver pequenos caminhos abertos pelas pessoas, distintos do que se projetou, em função do uso reiterado em meio a parques e jardins. Como também é muito curioso notar como monumentos e praças públicas são ocupados de forma diferente do que foi inicialmente planejado. Noções básicas de antropologia urbana nos dão inúmeros exemplos dessas mudanças miúdas e significativas nas cidades.
11.
Como serão as cidades do futuro? Há uma grande possibilidade de que venham a ser cidades inteligentes, totalmente controlada por máquinas de inimagináveis poderes informacionais? Serão cidades mais ou menos justas? Serão cidades comunais ou dedicadas ao individualismo exacerbado?
12.
As cidades estão submetidas a estruturas de representação arcaicas. Elas têm um governador no topo da pirâmide. Ele é ou deveria ser o proto-cidadão, aquele que capta os problemas e procura as soluções para seus representados. O modelo funciona como se as cidades fossem um espelho das Ágoras, as pequenas cidades-estado da antiga Grécia. Abaixo do governador vem o prefeito, cada um restrito aos seus limites de ação legal. O trabalho de ambos, por melhores que sejam suas intenções, está delimitado pelo imperativo do tempo em que permanecerão no poder.
13.
Na verdade, a cidade é uma convenção. Ela é formada por ruas e avenidas utilizadas como meios de circulação das pessoas e dos veículos. Em cidades como Los Angeles e Brasília, as vias expressas são integralmente dedicadas aos carros. Atravessar uma de suas longas avenidas é estar submetido a uma roleta russa. Le Corbusier imaginou a cidade ideal, onde toda a estrutura seria de vidro, onde todos observassem a todos, uma sociedade sem segredos, modelo de uma transparência utópica.
14.
Toda cidade mantém sua paisagem invisível, um locus vivo e pulsante convivendo com espectros de uma cidade que é passado. Uma casa que existiu durante décadas cede lugar a um prédio de apartamentos. É mais um capítulo da destruição criativa, eterno fluxo de vida e morte de todas as coisas, acelerado de forma impiedosa pelo capitalismo.
15.
É correto intitular de cidade aquela onde mora apenas um indivíduo? Parece mais um desses exageros perpetrados por americanos. Por lá existe esse tipo de cidade. O citadino é a autoridade de si mesmo e do seu quintal. No fundo, talvez seja esta a fórmula. Cidadãos atuantes e conscientes de suas ações podem promover o bem-estar coletivo. O do-it-yourself é muito mais que uma moda sociológica encerrada numa época.
16.
Cada cidade existe, na verdade, como múltiplas cidades. O moderno coexistindo com o arcaico, um mosaico de inclinações e hierarquias. Em Jerusalém a forma como alguém se veste pode determinar não somente sua origem religiosa – judeu, muçulmano, cristão –, como também o bairro no qual habita. Em Londres a origem de alguém pode ser identificada a partir do padrão de inglês que esse alguém fala. Se inglês cockney, então você está num estágio inferior da sociedade londrina.
17.
As pessoas moram nas cidades, mas no fim das contas moram em seus bairros, e por sua vez moram em suas casas e apartamentos, e por sua vez moram em si mesmas.