Edição 163 - Aracaju, 09 de setembro a 07 de outubro de 2012

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Ficção

Terra de casas vazias
Tudo se dobra e vem ao chão

Por André de Leones

Ilustração: Francis Bacon (Mulher sentada)

 

Garoava quando Teresa deixou o prédio. A visão através das lentes dos óculos escuros impossibilitada em questão de segundos, o mundo mais e mais embaçado e disforme. Esperou até que tudo se transformasse em um borrão para só então tirar os óculos e encaixá-los na blusa, junto ao pescoço. Não precisava deles, na verdade. O dia tão escuro. Em seguida, cobriu a cabeça com o capuz, colocou as mãos nos bolsos da blusa de moletom e saiu pela calçada. Uma adolescente cabulando aula, vagabundeando. Dia útil para os outros, não para mim. Seus passos eram incertos, como se tivesse bebido um pouco, e caminhava olhando para o chão, com medo de tropeçar no pavimento cheio de buracos, rachaduras, poças d’água, entulhos. Estava agora a favor do vento, o que não era ruim. O vento investia contra as suas costas e era como se a empurrasse. (Veja: sem raízes aqui.) À sua esquerda, do outro lado da rua, as árvores do parque ainda se dobravam. Lembravam pessoas se alongando antes de correr num domingo ensolarado. Evitou olhar para as árvores. A mesma sensação desoladora que tivera ao observá-las pela janela da sala, de que elas migrariam a qualquer momento. Não queria vê-las indo embora. Ou talvez elas apenas se dobrassem até quebrar. (Tudo se dobra e vem ao chão num estrondo, de um jeito ou de outro, mais cedo ou mais tarde.) Não queria vê-las se dobrando até quebrar. Não queria ver nada, mas um trecho menos acidentado da calçada permitiu que levantasse a cabeça. A cidade ao redor como que interditada, ninguém à vista. O cenário desolado de um filme apocalíptico. O mundo acabou: agora, podemos viver. Mas não havia ruínas. Os prédios, inteiros, se repetindo a distâncias regulares. Brasília, ora essa. Tudo em Brasília se repete a distâncias regulares. Fim do mundo, mas um apocalipse higiênico que extinguisse a vida humana, não as edificações. Os apartamentos todos vazios, como os de um prédio terminado e nunca inaugurado. Silenciosa e tranquila terra de casas vazias. Por alguma razão, isso lhe pareceu justo. Deus estalando os dedos e desaparecendo os seres, mas deixando os prédios intactos: concreto deiforme. Justo e agradável, sim. Glória a Deus nas alturas. Ao Senhor, que matou o próprio Filho e também o meu. Também o meu. Respirou fundo. Não se sentiu melhor. Qual é a porra do Seu problema? Arrancando os filhos de suas mães. Disseram a ela que não pensasse nisso. Não pensasse nessas coisas. Não pensasse. Todos, sem exceção. Mas, como não? Quando a falta é o que há. Quando tudo se reduz à ausência. Creio Em Deus Pai Todo-Poderoso Criador Do Céu E Da Terra E Em Jesus Cristo Seu Filho Unigênito Nosso Senhor etc. Seu Filho Unigênito. Tenta não pensar nisso, disseram. É difícil, quase impossível. Mas tenta. Para não enlouquecer. Para se recompor. Para seguir em frente. Você e Arthur. Ele precisa de você. Que infantil, ela pensou. Tudo, tudo isso. Do começo ao fim, afora e adentro. Pensar ou não pensar, seguir em frente ou não. Que besteira, que.

Tropeçou.

Uma rachadura na calçada, o tropeço e ela caindo de joelhos, as duas mãos ainda nos bolsos. Soltou um gemido, a boca mal se abrindo. Não deu com a testa no chão por muito pouco. Levantou-se com dificuldade. Dois pequenos rasgos nas calças, os joelhos agora poderiam enxergar o que estivesse à frente. Dois olhos vermelhos bem no meio das pernas. O moletom preto, quase não se percebia. Algumas lágrimas rolaram, poucas. Mais pelo susto. Esperou um pouco, que o tremor nas pernas passasse. Então, seguiu viagem, mais do que nunca concentrada no chão.

(Qual é a porra do Seu problema?)

Logo chegou à galeria, um pequeno amontoado de salas comerciais: o escritório de uma imobiliária, uma lanchonete, uma panificadora, um salão de beleza, o consultório quase sempre fechado de um dentista e um pequeno mercado. Na entrada da panificadora, havia uma prateleira com os jornais do dia e algumas revistas. As manchetes dos jornais eram todas sobre o anfitrião daquela noite. Brasília, ora essa. Ela pegou um dos jornais, os joelhos ardiam, escolheu uma mesa e se sentou.

Ficou olhando a foto na primeira página. O senador saindo apressado de uma comissão, cercado por assessores, seguranças, jornalistas. Atrás dele, compondo aquela espécie de cordão de isolamento, estava Arthur. Pelo terno e pela cor da gravata, identificou o dia em que fora tirada a foto: sexta-feira. Arthur estava cabisbaixo, carregando uma pilha de papéis junto ao peito, ladeado por um segurança enorme, a três centímetros da lente de uma câmera cujo flash dispararia a qualquer momento. Meio desfocado. O foco, obviamente, estava no senador. Ele tinha um dos braços estendidos para abrir caminho. Altivo, apesar de tudo. Olhos fixos adiante, para além da massa que o cercava, dos jornalistas tentando arrancar dele uma declaração, duas palavras, qualquer coisa. Ela voltou a se concentrar em Arthur. Cabisbaixo, desfocado. Um figurante no meio daquela confusão, ou nem isso. Os seguranças e os demais jornalistas, sim, eram figurantes. Estavam no quadro, ajudavam a compor a cena. Arthur também estava no quadro, é evidente, mas não compunha coisa alguma. Estava como que fora dele. Uma ausência, um fantasma. Ali como em qualquer outro lugar. Em casa, à mesa do jantar, ou mesmo no quarto com ela, dentro dela. Uma ausência que me penetra, que entra aqui dentro de mim. O sopro de um fantasma por entre minhas pernas. Onde é que você está? Com quem? Fazendo o quê? Ela fechava os olhos e esperava. Por mais inútil que fosse, esperava. Ele vinha, mas era como se não viesse, nunca viesse. Ou talvez seja eu. Os folhetos amontoados sobre a mesa da cozinha, a ideia de uma viagem, a insistência, três benditas ligações. Sim, talvez seja eu.

Olhou ao redor, esquecida por um segundo de onde estava e por quê. Era a única pessoa ocupando uma mesa no lugar. Duas funcionárias conversavam detrás do balcão. Você veio aqui para comer. Levantou-se e foi até o balcão.

— Café puro, por favor. E dois pães de queijo — pediu a uma das moças.

— A senhora vai levar ou comer aqui?

— Comer aqui. Ali — apontou para a mesa, o jornal aberto sobre ela.

— Eu levo para a senhora — disse a moça.

— Eu também peguei um jornal.

— A senhora quer um jornal?

— Não, eu peguei um quando entrei, estou só te dizendo. Não paguei por ele ainda.

— A senhora acerta tudo quando sair.

No banheiro, arriou as calças e se sentou no vaso sanitário. Limpou os dois joelhos com cuidado, usando pedaços de papel higiênico. Dois arranhões pequenos ardendo terrivelmente. A idiotice de soprar, coisa que só aumentava a ardência; soprou assim mesmo. E sorriu enquanto soprava, os olhos lacrimejando. Uma criança faria isso. Levantou-se e vestiu as calças com cuidado. Os dois rasgos, alguma lama. Enxaguou o rosto, lavou as mãos e saiu.

À mesa, enquanto esperava, começou a pinçar algumas palavras do jornal: “escândalo”, “desvio”, “senador”, “denúncia”, “renúncia”. Gostava particularmente de “desvio”. Explicava tão bem aquilo tudo. Não só o escândalo, o senador, a política, Brasília, mas todas as coisas, o universo inteiro, toda a maldita Criação.

Que tal lhe parece tudo? Um desvio.

A moça trouxe o pedido e perguntou se queria algo mais. Não queria. Provou o café, satisfeita. Glória já teria chegado àquela hora? Nove e vinte e três da manhã. Atrasadíssima. O pequeno Arthur gostava dela. Todos gostavam do pequeno Arthur. Não gostavam? Pensou em ligar para ela, saber o motivo da possível falta. Você não veio, diria para, em seguida, ouvir com desatenção o que ela dissesse. Doença. Viagem repentina. Morte em família. Qualquer coisa. Qualquer desculpa. Ligar ou não ligar? Não ligar. De repente, foi como se soubesse, adivinhasse. Outro pressentimento. Mordeu o pão de queijo, mastigou com os olhos fechados. Tomou outro gole de café. Ela talvez tenha ligado para Arthur, e Arthur para casa. A quarta ligação do dia. Mas eu não estou lá. Boa menina. O pequeno Arthur gostava muito dela. Indo ou voltando com ele da escola, à mesa do almoço, saindo para passear, as poucas quadras até a academia de natação. Mãos dadas. Gostava muito dela. Ele, que não está. Que não é mais. Enrolou o segundo pão de queijo em um par de guardanapos e, no caixa, pediu uma sacola.

— Não esquece de cobrar o jornal — pediu.

Deixara sobre a mesa, aberto. Não levaria consigo. Por que levaria? A moça, outra, não aquela que a atendera ao balcão, a moça sorriu.

A garoa tinha parado, mas o vento parecia mais forte. O plano era dos mais simples: voltar para casa, tomar um ou dois comprimidos, um e meio, o médico pedira que não tomasse dois, e dormir até o final da tarde, quando teria de se levantar a fim de comer alguma coisa, talvez aquele segundo pão de queijo, e se arrumar para o jantar. Comer alguma coisa, arrumar-se. Ninguém em casa. Um dia a menos num piscar de olhos. Perfeito.

De fato, ninguém em casa. A sexta falta em dois meses. O pequeno Arthur realmente gostava dela. Mãos dadas. Os olhos dela, parados. Como que tornados vidro repentinamente. Tão concreta ali, e de súbito — cinzas. Uma parte dela indo embora com o garoto. Uma parte de todos nós.

Glória talvez tivesse ligado para Arthur e dito que, eu sinto muito, muito mesmo, mas não posso mais, seu Arthur, não consigo. Vendo fantasmas? Um desvio, por certo. Depois outro. E depois outro. E assim sucessivamente. Caminhando em círculos, ao redor daquela ruína. Ou não, eles próprios a ruína. Sim, arruinados. Sim, vendo fantasmas. Não posso mais, ela teria, terá dito. Como não? Como você pode me deixar aqui sozinha? Como você pôde?

Fechou a porta do quarto e, sentada na cama, descalçou o par de tênis.

O copo com água sobre o criado-mudo, o mesmo da noite anterior, ainda pela metade.
Ela despiu o moletom e olhou para os joelhos arranhados. Joelhos de criança. Pequenos, arranhados. O que é que você andou aprontando?

Abriu a gaveta do criado-mudo. Já havia um comprimido pela metade. Por um momento, pensou se não seria mesmo o caso de tomar dois. Melhor não, ainda o maldito jantar pela frente. Tomou um e a metade de outro, deitou-se na cama desarrumada e se cobriu como pôde.

 

  
André de Leones (Goiânia, 1980) é autor do romance Dentes negros (Rocco), entre outros. Mantém o blog vicentemiguel.wordpress.com e está no Twitter (@andredeleones). Esse texto é um trecho do novo romance do autor, Terra de casas vazias, que será lançado em 2013 pela Rocco.